Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

24.11.14

A NOITE EM QUE A BOMBA REBENTOU NAS MÃOS


The Cat Runner

IMG_3400.JPG

 

 

(Este texto tem 8 páginas, aviso já, mas dá para ler)

Sexta-feira, 21 de Novembro, Dia Mundial da Televisão.

Foi ainda não há 24 horas, no momento em que escrevo esta desconcerteza.

A data foi proclamada pelas Nações Unidas em 1996.

Na sexta-feira houve jogo.

Há sempre jogo, todos os dias, hora-a-hora.

Meia noite em ponto.

No limiar do Dia Mundial da Televisão, para duas loucas, inesperadas, alucinantes e marcantes horas de televisão. Não há como esquecer este dia, esta sexta-feira, este Dia que eu desconhecia existir, o da Televisão.

Ele tratou de se apresentar. Que sina, que amor. Afinal...

Ficou uma marca para sempre, no primeiro segundo do dia seguinte ao Dia da Televisão. Que sina, que amor.

Meia-hora antes. Onze e meia. É o que a memória me dá.

Nestes jogos da meia noite apenas costumo ser chamado pelo "mister" para substituir uma folga, uma doença, umas férias.

Costumo ser titular é aos fins de semana de manhã. Pela fresca.

Só que, na verdade, o dia começa pela noite, ela só o faz adormecer.

Calhou o "mister" meter-me a jogar. Apenas isso, mera sorte, no local certo, à hora certa, no momento certo. No jogo certo. Acaso.

Vem isto a propósito de terem passado agora 48 desde que José Sócrates foi detido.

Acho tudo tão sério, tão profundamente grave, que não manifestei opinião, não por receio de conotações, apenas porque me obriguei ao exercício de observar, de fora. De fora.

Eu estive sentado em cima do vulcão quando ele decidiu começar a expelir lava em todas as direcções.

Do lado de fora, durante 48 horas, que amanhã recomeça o carrossel. E gira e gira e gira. Há momentos em que sinto que nunca saí fora da caixa, mesmo tendo saído de dentro dela.

Estas 48 horas de distância permitiram-me perceber que em todo o debate, generalizado, democratizado, não percebi - admito a falha ser minha - ter lido o que quer que fosse sobre os que estiveram sentados em cima do vulcão quando ele acordou, do nada.

Sim, do nada.

Meia hora de vantagem não dá para descer a encosta já barrada de lava que corre e se adensa.

Li muitas opiniões, no âmbito político, sobre esta detenção, no âmbito judicial, até no âmbito do humor. Li, vi e ouvi o banal nestas situações. Nada de novo. Eu gosto de coisas novas.

E, porque tudo começou no segundo em que acabou o Dia Mundial da Televisão, (meia -noite + 1 segundo) porque todos aqueles que conseguiram garantir que quem esteve no "ar" conseguiu fazer as coisas dignificando os profissionais que pararam no tempo, que vidrou.

Gritou, baralhou, enganou, acertou, apoiou, quase chorou - até que a voz doa -.

Tive que beber água várias vezes.

Merecem ser empurrados para a linha da justa justiça, acho que é de elementar justiça, por isso, escrever na pele de quem foi projectado do topo do vulcão e, amparado por fantásticas equipas, no meu caso, no singular, equipa, fantástica gente, gente que por muitas críticas que sofra, gente que por muitas injustiças que sofra, gente que por muito cansada que esteja, arregaça as mangas. E faz tv. À séria. Não nesse sentido.

Fazem(os) tv à séria todos os dias, é a nossa profissão, o nosso ofício, aqui à séria é até cair para o lado, porque assim terá que ser e, nós não caímos para o lado todos os dias (mas quase).

Somos poucos? Façamos o de todos.

Desta noite de sexta-feira das bruxas é essa a lição que levo e é sobre ela que vou escrever.

Sobre gente, pouca, que arregaçou as mangas, gente que se uniu, gritou, baralhou, enganou, acertou, apoiou, quase chorou - em momentos, tenho a certeza - gente que parou no tempo, que vidrou. Focou. Frizou. Cegou. Sabíamos todos ao que íamos e fomos. Tínhamos essa obrigação.

Era para se fazer.

Era para se fazer.

Era para se fazer.

Foi feito. E, é sobre como foi feito, sem cometer inconfidências profissionais ou tocar em matérias não tratáveis em público, que vou escrever, na minha pele. Na pele do Zé Gab ou Zézix (para os amigos) e na pele do José Gabriel Quaresma, que foi chamado a jogo por uma casualidade de agenda. O gajo e o jornalista.

Ponto prévio: recebi dezenas de mensagens elogiosas, para mim e para a equipa que conduziu a emissão desta inesquecível 25 Hora. As que importam. E outras. Entre largas dezenas recebi uma única negativa. Agradeci e expliquei-me. Entendeu-me e agradeceu a "humildade" ou lá o que isso seja. Não perdi uma espectadora, pelo menos, acho.

Aqui não.

Aqui quero falar sobre como me senti durante duas horas e meia "sem rede", porque os acontecimentos estavam a ser alucinantes, "sem rede".

Isto é: "sem rede", um termo que usamos quando não temos teleponto, porque há uma rede. E, ainda bem.

No caso a editora Margarida Pires, o realizador Pedro Aparício, o assistente de realização F. Kruss, o produtor Bruno Viana, as jornalistas Maria Micael, Aline Raimundo e a Maria José Garrido, o repórter de imagem Luis Branco e o câmara de estúdio, o Faísca, até ele andou num vai-e-vem com o ipad dele a mostrar-me informações novas (as coisas que se passam no ar). E, o Custódio, assistente de estúdio, que aposto, nunca assistiu a uma coisa destas. No áudio, iluminação, e nos restantes postos não me recordo, por isso me penitencio. Nunca sabemos o nome de toda a equipa, até porque ela roda ao longo dos noticiários. Perdão.

Esta era a minha rede. A minha corrente. Limitei-me a ser o rosto de toda esta gente. É isso que um pivot é: o último e visível elo de uma enorme e eficaz corrente. Nada mais.

Não faço a mínima ideia do que se passou nos bastidores durante aquelas duas horas e meia em que estivemos em directo.

Fui ouvindo, aqui e ali, pelo auricular, percebi que falavam ao telefone, que havia tensão lá dentro. Tinha de haver.

Obviamente, os responsáveis de toda a cadeia informativa estavam ligados com a régie, o centro das operações, isso é o normal.

Quanto ao resto não faço a mínima ideia, confesso.

Por isso, caro(a) leitor(a) aceite o meu convite para uma viagem de mais cinco páginas, bem menos que as duas horas e meia que estive em directo.

Seja bem vindo(a) ao verdadeiro mundo da televisão:

O alinhamento do programa estava praticamente feito. Alinhado, pivots revistos, lançamentos do directo (íamos ter um directo), a imprensa do dia, os destaques. Vestido, maquilhado.

Estávamos apenas à boca do túnel prestes a entrar em campo, a aguardar, aproveitando para retocar os detalhes. Por isso as senhoras retocam a maquilhagem. Raquel e Paula, desculpem a minha não atenção quando entraram no estúdio para me retocar. Se lerem este texto vão perceber porque é que não deu e eu fiz o meu olhar demoníaco. Peço-vos desculpa.

Faltava perto de meia hora para começar. Tudo ligado. Tudo pronto, como se em televisão, como se em informação tudo estivesse pronto.

Inventado sim, pronto.

Sentia-se alguma tensão.

A notícia das três detenções e das buscas na sede do grupo Lena soube-se a uma hora do jornal, em plena preparação final do jornal.

Alterámos a abertura.

Sentia-se, sem que alguém alguma vez o tenha referido, que estava qualquer coisa para acontecer. Aquela notícia às onze da noite trazia água no bico.

Os jornalistas tem técnicas, treino, formação, experiência e instinto.

Sentia-se.

Um café - que deixei de fumar há uns meses - para soltar a criatividade, a coragem, a imaginação. Sinto sempre um peso nos ombros. À meia-noite esse peso é enorme.

Mal me sento, para olhar pela última vez - na redacção - o alinhamento, percebo que alguém estava ao telefone e que era grave. Sente-se. Percebe-se.

A informação não podia ser libertada para ninguém. É normal nestes casos. Não se trata de falta de confiança nos camaradas - é assim o termo técnico que os jornalistas utilizam para se referirem aos colegas - há alturas em que a informação é restrita. Como em zonas restritas de uma organização. Por motivos vários. Sobretudo para proteger as pessoas e a organização, numa primeira linha.

Bastou-me uma troca de olhar. Em voz baixa, uma frase, bastou.

Tentei desbloquear contactos. Consegui um. Estava a acabar de aterrar no mesmo aeroporto. Zero. Os outros não me atenderam.

Não podia desdobrar-me mais. Tinha que começar a focar o "jornal" e a preparar-me mentalmente. Alguma coisas estava prestes a acontecer e eu sabia que o vulcão ia acordar nesta sexta-feira. Todos o sentiam.

A partir desse momento, o tempo voou, na exacta medida em que há pouco tempo tinha aterrado o avião. A detenção foi às dez e um quarto da noite. O noticiário é à meia-noite. Rápido. Reacção.

Apelei a todos os meus anjinhos e santinhos (não tenho nenhum), fiz exercícios respiratórios - já nem me lembrava da última vez - mexi o pescoço para um lado e para o outro. Ajeitei a gravata. Quase me benzi. Mas sou ateu, graças a Deus. Na verdade, não o sou, de todo, sou só um pouco.

Havia a informação. Pouca, quase certa mas...

Praticamente confirmada, mas...

Não se dão informações, conscientemente, não totalmente confirmadas, logo em risco de poderem ser erradas. Dizem as sebentas: é preferível não dar se não há 100% de certeza.

Nas notícias o 100% de certeza existe.

Durante velozes minutos tentámos tudo, cruzamento de fontes, accionar meios, técnicos, humanos e, não esquecer, ir a correr para o estúdio.

A minha missão começava ali. A da equipa continuava dentro da régie.

Mas, estas coisas, estes casos, estes temas, estes acontecimentos não são de tratamento rápido, no sentido em que todos os meios estão disponíveis, mas são de decisões rápidas, tratamento da informação a ritmo supersónico, sob imensa pressão, súbita, no exacto momento em que a lucidez e o profissionalismo chocam com alguma confusão momentânea.

Estamos treinados para isso. Por isso somos jornalistas. Por isso nos distinguimos profissionalmente de outras classes, do cidadão comum que conta histórias.

Estamos treinados, temos códigos, responsabilidades. Uma delas é decidir muito rápido. Margem de erro mínima, zero. Teoria. A prática já nos ensinou que há erros. Cometem-se. Ganha quem dá menos.

Dou por mim dentro do estúdio a ser "micado".

Microfones, auricular, testes, comunicações, abrir computador e alinhamento. As redes sociais. Acompanham-me sempre.

Testar ligação wireless para o tablet para a Revista de Imprensa.

Tudo pronto. Como tudo pronto se a bomba ainda não tinha rebentado?

Aquela realidade era mais virtual que o cenário. Todo.

 

É normal, antes de começar, durante ou depois de terminar que se mandem umas bocas, sobre bola, sobre isto, sobre aquilo. Momento de descontração.

O Faísca fala comigo, sentado atrás da câmara dois.

Fiz cara feia. "Faísca, hoje não. Está a rebentar-nos uma bomba nas mãos. Prepara-te!". Ele percebeu. São muitos anos.

Aí sim, o Faísca fez cara séria. Feia não, que ele tem uma cara castiça.

Arrancou a emissão.

Genérico incial: "25 Hora, com José Gabriel Quaresma". A vírgula não se ouviu.

Abrimos com a notícia das buscas e das três detenções.

Seguimos alinhamento.

Estávamos pendurados por um fio de cabelo para soltar a informação.

Li os destaques - um dia depois a ver a gravação ainda ri, afinal menti aos espectadores, dos destaques, não passou um único tema, permitam-me o "lol" - avancei.

Sentia-me dentro de uma bolha prestes a explodir.

Foi a experiência em piloto-automático que me deixou apresentar os primeiros doze minutos de jornal.

A cabeça e os olhos estavam já nos sites, a tentar recolher informação. Os ouvidos à escuta. Os olhos na concorrência, o canto do olho na peça que estava no ar.

Gritam-me ao auricular. "Confirmado. Sócrates detido no aeroporto".

Olho os monitores, mega-lead no ar.

Peça quase a terminar. Tablet teima em não abrir páginas. Fuck, gritei!

Às vezes gritamos.

Trinta segundos: " queres que dê pivot solto e depois vou improvisando e vamos ganhando tempo?"

Quinze segundos: " sim, avança. Está confirmado".

A peça estava a terminar. O mega-lead no ar.

Aquele que sería um jornal de meia-noite tranquilo acabava de começar a transformar-se naquela que foi a mais dura batalha que travei até hoje, em quase vinte anos a fazer tv, dentro da tv.

"Sim avança..."

Quatro, três, dois, um é teu...

"É uma notícia de última hora. Uma notícia que vai abalar Portugal nas próximas horas. O antigo primeiro-ministro - não gosto da expressão ex - José Sócrates foi detido há momentos, no aeroporto da Portela, em Lisboa".

Foi mais ou menos assim que arranquei, do que me lembro.

Lembro-me que tinha as paredes do estômago coladas - preparação para a endoscopia de quarta-feira -, lembro-me que a boca estava a secar, lembro-me da bolha dentro do meu cérebro e da consciência que estava a abater-se sobre mim. Não era só televisão, era a primeira detenção de um antigo primeiro-ministro - ex não gosto - na História de Portugal pós-25 de Abril.

Não era apenas televisão. Era televisão! Um daqueles momentos que nos caem no colo e temos que acarinhar com tudo o que temos.

Raramente vejo o que faço.

Chegado a casa, morto, desta vez vi, fui ver porque quis perceber-me.

Percebi que à meia-noite tinha o mundo inteiro em cima dos ombros.

O pivot é apenas a cara, o último elo de toda aquela corrente.

Apenas encerra uma diferença em si, um erro seu pode matá-lo, em directo, qualquer outro erro também. Para sempre. De resto, todos os erros estão em igual patamar.

Responsabilidade, concentração, silêncio, as vezes que tiver que ser.

Usa as técnicas que ensinas. Sóbrio. Cuidado. Cuidado com o que dizes. Foi isto que me passou pela cabeça. Do que me lembro, poque foi uma viagem muito profunda.

E, lembrei-me da metáfora que tantas vezes utilizo: se estás em jogo, joga o melhor que sabes. Pode correr bem ou mal, mas se jogas numa equipa e se dela dependes, deixa a pele em campo.

"Continua, não paramos mais...", gritam-me de novo ao auricular.

Gritam-me, porque eu pedi para me gritarem. Para ser perceptível.

Não, não imagina um cérebro a processar informação numa situação como aquela. São teras de informação, o cérebro transforma-se num servidor de informação e emoções.

Tínhamos virado a meia-hora. O jornal saía à uma e dez e eu senti que nunca mais ia sair dali.

"Continua...enrola...vai aos sites...vê o twitter..."

"O meu twitter não dá, a discussão sobre o tema é com outros seguidores..."

"Gab, está confirmado pela PGR, comunicado..."

Tudo isto a acontecer enquanto continuo a ver, receber e debitar informação.

"Gab, bebe água, estás a perder a voz..."

Estava. Pausei. Bebi, com o braço encostado à mesa, inclinado, a relaxar o corpo, estava de pé, diz que fico mais magro e o formato é assim. E é, em ambos os casos.

Expliquei ao espectador(a) o que estava a fazer.

Em emissões longas e imprevisíveis como esta existe uma técnica que bem utilizada funciona a nosso favor. Funciona sempre, desde que a utilizemos: comunicar individualmente com que está a ver a emissão.

Resulta. As pessoas querem saber o que se passa e nós somos o seu mensageiro. Falamos para milhares, mas olhos nos olhos com cada um.

Devemos ser sinceros com o espectador. Ele é extremamente inteligente e observa-nos ao detalhe.

Digo sempre isto aos meus alunos. Esta segunda-feira vamos conversar sobre a cobertura mediática da detenção do antigo PM.

Uma da manhã.

A informação chegava a um ritmo alucinante, mas as peças do puzzle já me permitiam construir uma história e utilizar a técnica do "loop" e improviso sem erros e sem me perder, apesar de sempre saber para onde caminhava.

Contar a história, introduzir uma nova informação, enquadrar e repetir.

Improviso. O teleponto morreu há muito.

É só assim que se faz um directo "sem rede". Não conheço outras formas, se existirem informem-me que da próxima também as utilizo.

"Gab o X diz está a dar-nos os parabéns...bora"

O Y também.

Era uma e meia da manhã.

Aqueles parabéns foram, para mim e, penso que para a equipa, não lhes perguntei, o gel que tomo quando corro longas distâncias. Um boost. Bebi litro e meio de água. Sim, foi uma corrida de fundo, como gosto.

Primeiro, nos primeiros quilómetros, costumo rebentar, cansar, até aquecer.

É a longa distância que amo. As emissões "sem rede"!

Uma e meia da manhã.

"Gab, os três detidos não são alto-quadros da empresa, a empresa emitiu comunicado..."

Correcção feita. Informação nova. Enquadramento. Loop.

Nesta última hora e meia o teleponto esteve sempre em branco, costuma ser preto, com as letras GEN FINAL - FECHO.

Gosto.

Permite-me focar ainda mais o olho do espectador. Porque, na verdade, imagino-o para lá das letras.

Assim não tenho distracções no teleponto. As letras e palavras e frases são uma distracção. Para mim.

Corridas longas. Energia extra.

Senti, naquele momento, que a equipa estava sólida. Não senti, senti-me finalmente confiante. Em mim, foi mais isso, por causa deles.

Houve quem tenha entrado várias vezes no estúdio, durante a noite.

Trocas de olhares, olhos encarnados, um encolher de ombros. Um sorriso. Um fixe!

Durante duas horas e meia a minha maior preocupação foi não me desviar um milímetro sequer das informações que estava a receber, só assim conseguia proteger-me, dar-me protecção, aquela que ali só eu me posso dar, mais ninguém.

"Srobronne", disse várias vezes, de cabeça. Com a perfeita consciência que não dizer Sorbonne correctamente me ia penalizar.

Mas, também ensino aos meus alunos, em tv temos que criar prioridades. A minha era não me matar em directo. Antes não dizer correctamente a puta da universidade que trocar o nome ao homem.

Falei de vários nomes e nunca os troquei.

Em directo, do aeroporto, a jornalista. Rápido.

Mais tarde, junto a sede da PJ.

E "loop". Uma noite em "loop", só para sortudos. Uma noite em "loop" é uma noite interminável no tempo.

Foi chegada a altura em que senti que, ou havia um rasgo qualquer, ou pela primeira vez na minha carreira, o avião podia começar a ter dificuldades para continuar a voar. Confiante e aflito ao mesmo tempo. Eu sou assim, de dualidades permanentes.

Confiava em mim e na crew, no entanto.

No entanto, há vinte anos fiz um acordo com N. Senhora de Fátima: ela não fazia filmes e eu não fazia milagres. Eu tenho violado o acordo várias vezes com a ajuda dos "santinhos".

O Observador.

O Observador é um projecto de que gosto.

"Gab, David Diniz, no Observador...vai miúdo..."

"Directo TVi 24, agora com a sede do jornal online Observador, David Diniz, director, boa noite..."

A caminho de casa enviei-lhe um sms: "quando te vi no monitor virei Cão de Fila, filo e não te largo mais, foi o que pensei".

Trocámos um abraço virtual.

Depois de uma longa noite de duas horas e pouco, depois de ter saltado do cimo do vulcão, depois de ter montado o puzzle, depois de ter estado a voar a uma velocidade assustadora, agora sim, em velocidade de cruzeiro, tinha uma entrevista para fazer, com alguém com uma profunda inteligência política, jornalística. Inteligência.

Tentámos não nos "entalar" mutuamente no "ar". É um dos códigos.

Mas, não era uma entrevista fácil.

Toda a tensão que corre por estas linhas abaixo estava ali, numa enorme poça, aos nossos pés, perante o seu olhar.

A informação era conhecida. Naquele momento não havia mais. José Sócrates estava nos calabouços. Ponto. O "show" seguia no dia seguinte.

A questão política esgotou-se, a jurídica também. Embora a conversa tenha sido deliciosa, por isso passou a correr.

"Gab...vamos acabar..."

Fiz sinal para a câmara como que a dizer: a entrevista ou o jornal...

"Tudo..."

Nesse momento sorri.

"David Diniz, apesar de não haver a tua newsletter ao sábado, a tua newsletter começa com: enquanto dormia acontecia isto...hoje sería...enquanto estive acordado aconteceu isto...muito obrigado, bom trabalho, a noite será, seguramente - sem qualquer provocação- longa".

"Despede-te..." disseram-me ao auricular.

Desta vez não me gritaram.

"Ponto final nesta vigésima quinta hora, no dia em que Portugal foi abalado por um terramoto de dimensões imprevisíveis - mais ou menos isto -, foi um prazer. Em nome de toda a equipa, deixo votos de um fantástico fim de semana".

E, ouço, "entra genérico...aguenta...ainda tás no ar...saímos..."

Saí de dentro do estúdio uns cinco minutos depois. Subi para mudar de roupa, a roupa que levava vestida de casa. Voltei para trás.

E lá estavam eles.

Fomos poucos.

Demos abraços.

Desejámos boas-noites, sentidas, bom fim de semana, boa folga, bom trabalho. Sorrisos em caras brutalmente tensas, mas sorrisos e um sorriso é do tamanho de um oceano e de uma devoção. É verdadeiro.

Acho que o abraço que eu e ela demos, no fim de tudo, diferente de qualquer outro, e já nos conhecemos há vinte anos, já passámos por muitas provas de fogo, esse abraço, que eu e ela demos, apertado, foi tanto...Foi tudo.

Acho que estávamos comovidos, e sentimos que esse abraço foi dado a todos. Alguns observaram. Apertado. Ficou tudo dito ali, para todos. Que noite! que noite!

Ainda não conheço as audiências. Se calhar perdemos. Os números...

Uma coisa penso que ganhámos: muito mais respeito uns pelos outros.

Foi na noite em que fizemos televisão.

No fim do Dia Mundial da Televisão, um dia que marca a história da televisão e da democracia.

É por isso que ser jornalista é isto mesmo. Estar dentro da História. Contá-la.

Amo contar histórias.

Tudo o resto é o diz-que-disse.

Logo, as sete da tarde, vou falar às minhas alunas - são só alunas -, vou contar-lhes um exemplo prático, elas já escrevem bem para tv, do que é "escrever" para tv sem imagens, sem letras ou frases.

Por palavras ditas.

Depois, na segunda hora, um dos melhores do mundo vai falar-lhes sobre imagens.

Elas também já vão adiantadas em Linguagem Televisiva.

Vamos falar da noite de sexta e das imagens de sabado e domingo também.

Elas merecem conhecer esta história, se escolheram esta vida.

E, acho que lhes vou passar este texto por email.

Remeto-me ao silêncio, tal como fiz durante estas 48 horas. Dou a aula em silêncio. Aprendo também.

Cheguei a casa perto das três da manhã.

Senti ter corrido uma longa corrida, cansado mesmo.

Estive tentado a ir correr.

Corri no dia seguinte, sábado e domingo e acho que ainda ando com os pés nas nuvens, porque não vi notícias, recusei-me, porque acho que continuo dentro de uma bolha.

Meti mais uns paus na lareira.

Adormeci às seis.

 

Hoje volto para o "grande ginásio" onde todos transpiram.

O Dia Mundial da Televisão foi na sexta-feira.

O meu.

Este texto podia terminar como eu gosto, com uma frase, uma ideia fortes. Mas não.

Este texto acaba com um gigantesco obrigado a todos os que estiveram ligados a mim, a incentivar-me, a corrigir-me, a dar-me feedback, a apoiar-me, através do Facebook.

Mesmo - alguns - depois do final de tudo.

Pobre AC, que só foi "prá nite" às três da manhã, por minha causa.

É para eles que escrevo e descrevo esta experiência. E para as minhas alunas. E para mim. E para os que fizeram televisão nesta longa sexta-feira das nossas vidas.

A mais exigente da minha carreira.

22.11.14

O FADO DO SELVAGEM


The Cat Runner

mediapsyop1-700x330.jpg


 


 


Quinta-feira. Quase duas da manhã. Auto-estrada do Norte. Sentido Sacavém-Alverca.


Vem isto a propósito da brilhante entrevista feita pela Teresa Dias Mendes e dada por Carlos do Carmo e Maria Judite.


Dei comigo a escutar, a caminho de casa.


Isto só me tinha acontecido uma vez na vida; foi quando, eu conto:


Quando regressei do estrangeiro, onde vivi dois anos, reencontrei alguém de quem nunca me afastei.


Foi numa noite, enquanto o Fiat Uno preto, novinho em folha, subia a rua dos Duques de Bragança, que me aconteceu pela primeira vez.


Encostei o Fiat Uno. E, ali ficámos, em silêncio, escutando o "Postigo da Noite", na noite em que me apaixonei pelas palavras.


Esta noite, a caminho de casa, voltou a acontecer.


Desta vez não parei. Não se deve parar na auto-estrada, em nenhuma, muito menos na auto-estrada que conduz a nossa vida.


Coloquei o avião em modo cruise control, encostei-me, na verdade acomodei-me no banco e escutei.


Naquela noite, na rua dos Duques de Bragança, ali, encostadinho ao Chiado, conheci um homem chamado Fernando. Sem nunca o ter visto. Vi-o escutando-o. Hoje, meu mestre, hoje meu amigo, de coração, que sei, ele sabe. E segui-lhe os ensinamentos que sempre me deu, que sempre me dá quando o escuto sem que ele saiba.


Por vezes sabe, porque lhe o digo.


Esta noite, na minha viagem para casa, já vos falei do quanto gosto de apresentar notícias à meia-noite?


Já!


É também por causa desta viagem solitária que gosto do turno da noite. Quem bom. Só eu e aquilo que eu entender, ou nada. E eu!


Conforme.


Pouco me importa as várias opiniões sobre Carlos do Carmo.


Já privei algumas vezes com ele, em trabalho, sempre, em sua casa, uma vez, em locais insuspeitos nas outras vezes.


Sou um profundo admirador de Carlos do Carmo. Confessei-lhe.


Quando anunciaram o prémio fiz um directo com ele, na "exposição/museu".


O raio do directo saiu mal à primeira por causa da cobertura da rede móvel.


Mal começo o directo e faço a primeira pergunta, ainda sem Carlos do Carmo começar a responder, ouço no auricular que "caiu a ligação".


Isso. Foi isso que senti. Carlos do Carmo ainda não tinha sequer começado a responder e a ligação tinha caído.


Costumo dizer, quando faço directos na tv que "é a história da minha vida..."


Sempre que tudo está perfeito há algo que se encarrega de piscar o olho da ironia.


Segui em frente, como se nada fosse.


Carlos do Carmo respondeu. Escutei-o.


Estava a cometer um sacrilégio. Carlos do Carmo não responde, ele conta histórias bonitas.


Não podia continuar a farsa.


Deixei-o terminar, iniciei a segunda pergunta e antes que a terminasse disse-lhe: "peço-lhe imensa desculpa, a cobertura de rede está fraca e o directo caiu. Importa-se de o fazer em outro local, ali, por exemplo, junto às guitarras portuguesas?".


Carlos do Carmo sorriu. "Gosto da forma como me coloca as perguntas".


"A pergunta..." disse eu, baixinho.


Junto a gente grande somos pequenos. É bom perceber isso. Melhor ainda, respeitar isso. E crescer.


O segundo directo correu muito bem. Ele contou muitas histórias e eu deliciei-me a escutá-las. Junto a este homem sentimos o nosso tamanho.


É o afecto que regula a nossa caminhada, olhem, vejam, escutem, porra. O afecto. Tudo o resto anda a roda dele.


Carlos do Carmo. Gosto dele porque ele é um homem de afecto. Eu também sou. E gosto.


Lembro-me, a propósito, da carta do Chefe índio Seattle ao Grande Chefe de Washington, Franklin Pierce, em 1854, em resposta à proposta do Governo norte-americano de comprar grande


parte das terras da sua tribo.


O discurso era uma declaração de amor, de profundo amor ao significado amar.


Esta passagem atravessa-se nessa carta e no meu caminho.


"O ruído não insulta apenas os ouvidos. Insulta a alma, o carácter, o coração, insulta o afecto. Mas, talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreendo".


Selvagem e, mais do que provavelmente, bi-polar. Eu.


Vou daqui até aí enquanto uma luz se acende.


Depois apago-me, lenta e suavemente.


Dois pólos. Dois extremos. Dois momentos. Dois dias. Duas corridas.


Corri de raiva e depressa num dia e escrevi parte deste texto.


Corri para me retemperar no dia seguinte e escrevia a segunda parte deste texto.


Hoje, o dia seguinte.


Outro olhar, porque corri e é o fim do texto.


Foi isso que fiz.


Ao longo deste texto não percebeu, mas houve dias pelo meio, três.


Tentei ligar o texto com os dias e com a disponibilidade, sobretudo vontade, em escrever.


Deixou de fazer qualquer sentido, mas um texto escrito não se mata.


Passaram três dias de um texto encalhado entre as linhas da escrita.


O próximo será sobre o Dia da TV. Ontem. À meia-noite. Quando detiverem um antigo primeiro ministro português, pela primeira vez na história do Portugal democrático.


 


 

14.11.14

FOI UM DIA FELIZ (em letras pequeninas)


The Cat Runner

 


SABADO


 


 


Pela primeira vez na vida celebrei o meu aniversário a correr. À meia noite em ponto. Com um foto e tudo.


Fiz de propósito.


Corri à meia noite e corri antes de terminar o meu dia de aniversário. Quis que fosse especial. Há um motivo para estas duas corridas.


Um jogo tem noventa minutos dividido em duas partes de quarenta e cinco minutos cada.


Cheguei ao intervalo. Recolhi à cabines. Descansei. Retemperei forças. Escutei as minhas indicações para a segunda parte. O jogo vai recomeçar sem que eu tenha ideia de quem está a ganhar ou a perder ao intervalo.


Quero viver até aos noventa anos. Lúcido, feliz, rodeado de afecto. Quero morrer de repente. Que me concedam apenas cinco minutos; para me despedir em condições e para encerrar as minhas contas nas redes sociais, que não gosto cá de rip´s. Apenas isso. Feliz, e de repente, com um pré-aviso de cinco minutos - desde que exista wi-fi.


É chegado aqui que penso na segunda parte da vida.


O que está para vir - uma pessoa em quem confio diz que virão mudanças - como virá, se virá, quando virá, porque virá.


Não estou certo que quarenta e cinco anos tenham sido tempo.


Foram meia-vida apenas. Não foram tempo. O tempo obriga a viagens muitos rápidas.


Viagens que vão desde os carrinhos de rolamentos, aos mergulhos no Tejo, às namoradas, passam pelo Liceu e pelos amigos, e por aquilo tudo que tanto temos vivido juntos, longe uns dos outros, unidos quando a dor nos chama ou a alegria nos convence.


Que raio, metade de uma vida não é tempo. Uns acordes que rasgam linhas escritas com ternura, talvez. Tempo. O que é o tempo?


Terei tempo para ver sonhos? Porque eu sonho. Terei tempo para ver o mundo ideal? Porque eu acredito nesse mundo. Terei tempo para fazer tudo o que não fiz?


E, afinal, o tempo invade-me o espaço, ele que é pouco mais que tempo, invade-me o espaço na ânsia de travar a viagem.


Meia vida.


O ir, sem conseguir voltar. O voltar, com toda a incerteza dentro da mala. A aventura que foi. Tu. Tudo.


E escalar a montanha e chegar ao cume da montanha e ficar no cume da montanha e levantar uma perna e ficar sustentado na outra perna e o vento mais forte e o equilíbrio. Finalmente, o equilíbrio.


Meia vida é uma viagem para trás e para a frente. Tenho outra meia vida pela frente.


As forças. A armadura. A coragem. A determinação. Saber. Conhecer. Viver. Ter vivido. Tudo isso ajuda, mas a segunda parte deste jogo, talvez, não sei, talvez mais desafiante, será por isso mais desgastante. Até que um dia pára. Um dia pára.


Hoje fiz quarenta e cinco anos. Quero viver até aos noventa, já tinha dito.


Não gosto de assinalar datas. Só algumas. Poucas. As que gosto de assinalar tem muito a ver comigo. O meu aniversário tem muito a ver comigo. Auto-assinalo-o, se é que posso escrever assim.


No Natal, no Natal convivo com a família, mas tenho um Natal só meu. Como na corrida. Corro com muita gente, mas a corrida que corro, corro a minha.


Eu não faço a mínima ideia se vou viver mais um segundo, quanto mais quarenta e cinco anos. Não faço eu nem faz ninguém. Meto um almoço?!


Mas sei que vou viver todos os segundos, segundo-a-segundo, até chegar aos noventa, ou antes, se antes for para um lado qualquer.


Este ano não contei as mensagens, nem os comentários, nem os likes, que me foram deixando nas redes sociais.


Foram muitos.


Sou uma pessoa que tem alguma exposição pública, algum reconhecimento profissional e pessoal e, é natural nestes momentos haver sinais mais intensos desse eventual reconhecimento.


Não é relevante a quantidade de coisas que me escreveram. Foram boas, todas, e tocaram-me, todas.


Este meu dia cresceu, sobretudo com curtas mensagens de algumas pessoas, longas mensagens de outras, mensagens de outras que não imaginaria receber, mensagens que me tocaram, um vídeo, uma frase, uma foto.


Cresceu, este meu dia. Sou um tipo de afectos, criticado por ser muito aberto, muito exposto, como se os afectos devam estar selados e isolados do mundo que são os outros.


Se não aponto o dedo a quem assim é feliz, parece-me de mau tom apontarem-me o dedo assim. Mas, ao intervalo da vida, no balneário, o mister foi claro: "aqueles que não te deram os parabéns, que convivem contigo todos os dias, que não te cumprimentam sequer, que olham para ti com arrogância, algum desprezo misturado, frustração, porque não, aqueles que não te conhecem, nem ao teu verdadeiro jogo, aqueles que só te vêem nos treinos e pouco, a esses oferece-lhes um sorriso. Por um lado és tu. Por outro vais fazer com que te detestem ainda mais, o que é óptimo, senão onde vais buscar adrenalina?".


Não contei as mensagens, comentários nem likes, no dia de hoje.


Nem contei aqueles que nem sequer um abraço enviaram. Gostam assim.


Hoje, fixei nomes, quase todos, frases, músicas, imagens. Tenho as frases na cabeça, tipo pop-up´s...


Vocês, um a um, sabem quem são.


Foram vocês que escreveram, que enviaram mensagens, que dedicaram um pouco da vossa atenção.


É para vocês que dedico todo o meu respeito profundo.


Agora que vai começar a segunda parte, há no topo norte, uma tarja que diz, em letras grandes, pretas: " Não é porque tu não gostas de mim que eu não gosto de ti!". Quarenta e cinco intensos, distantes, longos, cheios, apaixonantes, desafiantes, arriscados, loucos, sérios, felizes e tristes anos.


Começou a segunda parte. Já é dia 14.


Nunca ninguém saberá o resultado final.


Logo hoje. Hoje partiu mais um bravo. Tive com ele as maiores divergências. Em momentos fui desagradável, nas suas costas.


Um momento bastou para percebermos quem éramos, na verdade é é isso que falta a quase todo o mundo. Olhar nos olhos. Pedir desculpa. Perdoar. Eu dei esse passo. Era a mim que cabia dar esse passo.


Hoje, partiu o Filipe Mendonça. Ainda bem que não o vi por estar em casa, afinal fiz anos. Partiu um enorme jornalista. Alguém que eu estava a começar a aprender a conhecer, dentro do pouco em que ele me deixava penetrar. Pacientemente.


As feridas curadas.


Nunca, mesmo quando nem sequer nos cumprimentávamos nos corredores, deixei de ver no Filipe um bravo. Um enorme jornalista. Que arrisca na escrita, que ousa, que cheira o detalhe, saboreia o pormenor, brilhante. Às vezes penso em coisas que fiz, que quero fazer.


Por isso gosto do trabalho do Filipe. Estava a aprender a gostar do Filipe e ele foi-se embora. Despediu-se hoje. Asfixiou. Abriu a porta do mundo e saiu. Sem nada, mas com tudo o que tem nas mãos. Tudo.


Não vou conhecer o Filipe. Não vou lamentar a sua decisão.


Apenas não me reconheço.


Não reconheço as caras, as vozes, os olhares, o chão, os cheiros, não reconheço a vida assim.


Há jogadas muito rasteiras, mas há uma segunda vida inteira para jogar.


Hoje fiz quarenta e cinco anos. Quero viver até aos noventa, já tinha dito.


Vou só ali mudar a táctica.


Digamos que a partir de agora é à séria. É que neste jogo não há prolongamento, pelo menos que se saiba.


Se conhecer alguém que tenha voltado para contar, por favor, deixe o seu comentário e contacto.


 


 


 


 


 


 


 

04.11.14

O DIABO ÀS VEZES PODIA SER MAIS SIMPÁTICO COM ALICE


The Cat Runner

proyectop_article_6346cefa8f58aee70027304ec9857d3d


 


 


Alice nunca esteve no País das Maravilhas. É mentira o que dizem, é mentira a mentira, é mentira a verdade.


Mentira no amor, mentira sabor, mentira a tristeza, quando começa a tristeza não se vai.


Tudo é mentira neste mundo, tudo é verdade, tudo é mentira, porque será?


Não sei se é do coração.


Alice nunca conheceu a rainha de Copas, e eu posso provar. Não há corações em terra do Diabo.


A mentira é a verdade, por isso houve em mim, sempre, qualquer coisa de revolta. Romântica, porque a revolta não é um sentimento redutor, é revoltar, voltar a dar.


Não é a revolta da raiva. É a revolta de gostar. Eu gosto da verdade, embora, às vezes, a mentira magoe menos.


Por vezes ter-me-ei revoltado com nada, tamanha revolta. Não gosto da mentira nem do mal. Nem do Diabo.


Gosto da Alice, mesmo que nunca tenha posto um pé no País das Maravilhas.


Mais tarde caí, cansado de tanto amar. Tantos corações. Tombei.


Caio abaixo, caio acima, não caio da vida.


Um dia me virão buscar e, na saída, sairei sem pagar.


Depois subo as escadas, doem-me as pernas, sinto-as a puxar-me para baixo, mas os braços não me largam e as mãos colam-se á pele da cara. A música toca veloz, pesada. Sonho com os teus olhos e olho para o lado.


E, depois de subir as escadas sento-me contigo.


Ecoa ainda: " o que fará sentido se as coisas terminam assim?"


"Parece que há um saco, um saco destinado a levar socos. De tão habituado, o saco já só reage à primeira pancada. Depois encaixa o que por aí vem. Um atrás do outro".


Esta noite sonhei com sonhos que eram realidade.


Coisas que são boas para mim, coisas que são uma emergência para mim.


A vida é uma emergência.


A loucura é uma emergência. A morte e a vida. A emergência.


Estive tentado a ligar ao meu médico do foro psiquiátrico, já não conversamos há uns dois anos. Ele é especialista em emergências da vida. É um tipo imparcial. Às vezes inclina a cabeça para trás e semi-cerra os olhos. Parece adormecer.


Do nada faz uma pergunta.


Gosto de pessoas que fazem perguntas do nada. Ficámos amigos há uns bons anos.


Ele é do Sporting, eu sou do Benfica. Ele é o meu médico e eu sou o seu paciente saudável.


É assim que me trata o meu médico especialista em Gastro, o paciente saúdavel. Sou seu admirador. A música que tem no telemóvel em modo espera é "Satisfaction", dos Stones.


"Sabe que foi considerada a música do século?"


Os meus médicos são meus amigos. Gente para lá do comum.


Gosto de gente não-comum.


Lembrei-me dos dois porque eles tratam das emergências da vida, mais do que de cabeça ou do estômago de cada um.


E, eu gosto de pessoas que me façam viajar.


Viajar é uma emergência.


As coisas não tem que terminar assim. Não deviam terminar assim.


É tão difícil encontrar o sentido das coisas.


Eu, com a mania que mudo o mundo.


O mundo é uma bola que vive à flor do pé.


As coisas não tem que terminar assim. "A vida podia ser tão simples".


Ouves isto depois de sentires a preocupação que vem de algum lado, ali à tua frente.


O que dizer mais, quando passas a saber que aquelas estatísticas sobre a violência doméstica não são meros números.


Já antes sabias, no fim deste texto explico, mas não vai fácil este caminho que se caminha por entre espinhos e baús com moedas de ouro no fim de arco-irís a preto e branco.


As crianças são o grupo de maior risco, em Portugal. As crianças, em Portugal, são o grupo social mais afectado com a crise dos ricos. As crianças, em Portugal, são o grupo social que mais sofre entre quatro paredes.


É isto que criaram. É isto que criámos. Uma tômbola com gente lá dentro. Gente louca, gente pequena, gente que não sabe rezar, gente que não tem coração de esperança.


Foram linhas cruas.


O saco de pancada, habituado a levar pancada, começa a ganhar vida própria.


Morreu gente que não devia morrer já.


São linhas cruas.


Estou cansado de correr pelas minhas perdas. Quero correr para ser feliz. Não quero perder mais gente, pelo menos este ano, já não era pedir muito.


Quero correr para ser feliz.


Comecei a correr há um ano.


Um ano em que tenho perdido pessoas de quem gosto.


O Diabo terá feito uma aposta comigo. Desconfio. Não me avisou porque é o Diabo.


Como Diabos ao pequeno-almoço. Avisem o gajo.


Tenho corrido por elas, pelas pessoas que perdi, por aqueles que gosto. Por mim.


Estou cansado.


Isto chegava.


Mas, não...


Tive que conhecer a personificação das estatísticas que queimam tanto quanto o sal vertido pela perda.


Este fim de semana entrevistei uma senhora, lutadora contra a violência doméstica, que mata, em Portugal, mulheres às centenas.


Como nos países mais fundamentalistas.


Infinita pobreza!


Não conversámos sobre as crianças. Era sobre as mulheres, o tema.


Não conversámos sobre os homens.


Pouco falamos da violência doméstica sobre crianças e homens, em separado, em conjunto.


Hoje, tive conhecimento de um raro caso destes.


Tem sido um ano difícil, este.


Ou acaba rápido ou acabo rápido com ele!


Em alternativa, aceito boas notícias, ou isto será vingança do Mafarrico por eu dar muitas más notícias?


Vamos lá correr as cortinas, abrir as janelas e acabar com as sombras.


Hoje foi dia de corrida. Amanhã é dia de corrida.


Se me cruzar com o Diabo prego-lhe uma rasteira e digo-lhe que sou amigo de Alice.


( Um dia conto a história da directora do INE que me ligou para desabafar, depois de uma peça minha sobre este tema. Quis contar-me o que sofrem e como sofrem as pessoas que nos tratam como números. Um dia.)


 

01.11.14

PÃO POR DEUS PORQUE AS BRUXAS TAMBÉM CORREM À NOITE


The Cat Runner

bruxas


 


 


Eu lá ia deixar de correr hoje. Logo hoje! Esta noite!


Foi uma decisão inconsciente, correr à noite na noite do "pão por Deus", perdão, das bruxas.


Inconscientemente imposta, a decisão. Detesto imposições. Não é assim que funciona. Gosto das coisas pré-determinadas, não gosto de coisas pré-concebidas, sobretudo ideias e posicionamentos.


No dia em que se votou a proposta de Orçamento do Estado, no dia das bruxas, a agenda foi mais austera que o próprio Parlamento.


A reunião da manhã foi adiada, mas logo foi marcada uma outra - bem agradável, por acaso, um mini brainstorm. Adoro brainstorms, a sério.


Já não consegui ir à Fisiogaspar visitar o meu amigo António e perceber como é que vou corrigir, digamos, uma descompensação estrutural, no lado esquerdo, em particular na perna e pé esquerdos, provocada por um grave acidente em 2004.


Agora, vai dar-me jeito arranjar isto.


Segui para a tv.


Apanhado por uma manifestação, mais uma.


Alguém já contabilizou este ano?


Uma hora no Marquês de Pombal, meu caro ou minha cara, nem quando o Benfica é campeão eu vou ao Marquês de Pombal.


Apenas queria ira da reunião- na segunda-feira bloquearam-me o carro no mesmo sítio de hoje - para a tv.


Não contando com os aviões militares russos que agora não nos largam a barguilha - vai-se a ver e é por causa do jogo do Sporting -, não contando que andam bruxas à solta em São Bento, não contando com o criminoso que confessou o crime e o inocente que está preso - é este o meu trabalho, dar notícias às pessoas, mas também dou boas notícias- a agenda não me deixava alternativa; só podia correr à noite, depois de uma tentativa frustrada de passar na Fisiogaspar, em alternativa ir comprar uns ténis novos para estrear ao quilómetro dois mil, frustrada, a alternativa, pensei no que acabei de escrever: no meu trabalho.


Dar notícias às pessoas. Más e boas. A Telma Monteiro ganhou, o Benfica ganhou, o Ronaldo vai ganhar e o Platini e o Blatter vão perder, dar notícias.


Logo eu, tímido. Sou. Obviamente que sou.


Dar notícias às pessoas não é tarefa fácil.


As boas, bom as boas todos gostam de as dar.


As más...


Ultimamente só tenho dado más notícias às pessoas. Ultimamente só me tem dado más notícias. Eu sei porquê!


Se recuar uns textos na máquina de escrever, alguns textos, está lá: na passagem de ano ninguém comeu as doze passas. Foi maldição.


Quem tem o mesmo ofício que eu sabe o que agora vou dizer.


Na maioria das vezes, depois de acabar de trabalhar, quando estou a dar notícias às pessoas, carrego nos ombros o mundo quase inteiro. A dor e os dramas dos outros. Há tragédias. Nós damos notícias trágicas às pessoas. Não são virtuais. Nada é virtual, a não ser o cenário do estúdio.


Às vezes as pessoas contam as histórias do lado de lá do ecrã, no momento exacto, chamamos-lhe directo. Mas, somos nós quem está a dar a notícia às pessoas. E nós, somos pessoas?


Pelo menos eu carregou o mundo quase inteiro nos ombros, quando saio do trabalho e vou para um lado qualquer. Nunca tenho destino certo.


Correr dá-me aquilo que preciso para me manter emocionalmente equilibrado, para dar montanhas de más notícias às pessoas. É um facto que só as vêem por opção, mas haverá a opção de fechar os olhos?


É que depois, cá fora, também eu, também nós temos uma vida.


E já nos basta ter que a levar a correr.


Bruxas para quê?!


As bruxas já não são horríveis, elas são bruxas belas.


Os homens é que aprovam orçamentos de vida austeros.


A noite é das bruxas. O dia também.


Vi algumas, esta noite, enquanto corria.


Esta noite levei-me pelas ruas da cidade, pelo fresco, pelo meio de bruxas mal amanhadas, caras pintadas, chapéus a furar o céu.


Hoje vi gente que a coisa mais doida que terá feito na vida foi tirar selfies disfarçada de bruxa, versão século pimba.


Que sejam felizes. Eu acho que cada qual deve correr atrás da sua própria felicidade. Correr, apenas e ser feliz.


Fui correr à noite para ver as bruxas.


As verdadeiras.


Durante o dia também vi algumas.


Só tinham elásticos na cara.


Dispensam máscaras.


As bruxas que vi esta noite não tinham vassouras voadoras.


No fundo, era isto que eu queria dizer!


Alguma vez eu ia deixar passar esta oportunidade de escrever na noite das bruxas. Alguma vez eu ia deixar passar esta oportunidade de correr na noite das bruxas.


Hoje já é um de novembro.


Hoje já é dia de "pão por Deus". Faltam 60 dias para acabar o ano e 83 quilómetros para chegar aos 2 mil.


Hoje já é "Dia de Todos os Santos" e amanhã o São Gabriel tem 13 quilómetros para correr, depois de dar notícias às pessoas.


Uma bruxaria!


( Ah e evitei aquele chavão de que não há bruxas mas que há e não sei mais quê ao longo de todo o texto, o que revela alguma capacidade para fugir das bruxas)