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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

27.10.14

AS DUAS CARAS DA MESMA CORRIDA


The Cat Runner

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Ontem, fui correr. A corrida tinha carácter humanitário. Revertia para a Cáritas Portuguesa.


Gosto de correr ao domingo de manhã, o que não acontece tantas vezes quanto gostava.


Aprendi a gostar de correr em provas. A mancha de gente, colorida. Muitas cores. Gosto de apreciar a forma como as pessoas se equipam em dia de corrida.


Os calções micro nas senhoras, coloridos. Bem giros.


Os tops de marca ou as camisolas técnicas cortadas nas mangas.


Gosto de apreciar os ténis dos homens. Há com cada um, daqueles que não me importava de ter. Um par para cada dia.


Gosto de olhar em redor, no meio daquela mancha colorida e, em instantes, reparar em quem é quem.


Eu consigo perceber quem é quem entre milhares de pessoas que decidem correr a um domingo de manhã pelas ruas de uma das mais belas cidades do mundo. Deve ter aqui alguma coisa de anormal.


Não há luz como a de Lisboa. Não há luz como a de Lisboa a um domingo pela manhã.


Por isso, deixei o carro perto do Saldanha. Nove e meia da manhã.


Não que tenha tido um início de dia lá muito pacífico.


Na verdade, acordei cedo, com tempo. Ando sempre a correr contra o tempo. Nos dias de corrida gosto de ter tempo e correr depois.


Olhei os "relógios", todos. Check.


É quando estou na cozinha, enquanto a casa dorme ainda, que entro em choque. São nove da manhã. Falta uma hora para a corrida.


Fico sempre preocupado em dia de corrida por causa do carro e da zona onde devo estacionar. Não é fácil: partes daqui, chegas ali e o carro tem que ficar não muito longe.


Pois, o relógio da cozinha é o único que não é digital. Não acerta a hora sózinho.


Bom. Não só dormi mais uma hora, como faltavam duas horas para a corrida.


Deixei o carro perto do Saldanha. Nove e meia da manhã.


Porreiro, descer a meio da Fontes Pereira de Melo, Marquês de Pombal - passei junto às Palavras Ditas -, continuar pela Avenida da Liberdade.


Era laranja por todo o lado. Laranja choque. Uma expressão agora sacada por mim que se pode aplicar a uma outra actividade que não é para aqui chamada.


Pareciam formigas cor de laranja. Espalhadas, mas todas caminhando na mesma direcção. Em direcção ao rio, ao mar, como o meu pai me ensinou. Sempre em direcção ao rio, ao mar.


Óptimo para aquecimento. Dois quilómetros a passo lento. Puro prazer! As montras das lojas caras estavam lindas.


Foi bom chegar até ao Rossio.


Já antes, no Marquês de Pombal,  sentia-se a atmosfera, que se foi intensificando passo-a-passo. Só que corre percebe.


Dois quilómetros depois, sim, do meio da Fontes Pereira de Melo ao Rossio são dois quilómetros bem corridos, uns alongamentos, uma ou duas fotos. Começou!


Uma janela de tempo de uma hora para correr dez mil metros. Dez quilómetros.


Adoro janelas. Abrem-se. Mostram. Revelam.


Partimos do Rossio. Nos passeios havia gente que aplaudia, como que a dar os bons dias aos corredores. (Só vi os primeiros corredores quase no virar dos cinco quilómetros e, nunca mais lhes coloquei a vista em cima, ia eu num sentido e eles já vinham no outro).


Virámos para Santos.


Agora, imagine: milhares de pessoas a correr, a caminhar, camisolas coloridas, ténis mágicos, calções de todos os formatos. Já imaginou?


Agora, imagine: na 24 de Julho também havia dezenas de pessoas nos passeios. Dez da manhã. Bom, ali já eram dez e um quarto, por aí.


Muita gente. Óculos escuros, copo na mão, cambaleantes, sorridentes, sentados. Olhavam-nos. Alguns dançavam. Nós também. Para mim correr passa por dançar com o asfalto, com o chão e com o céu. Estranho!


Eu - que em outra vida também ali estive, às dez da manhã, copo na mão, cambaleante, sentado - a correr, e aquela gente ainda nem à cama foi! Resistentes.


Do outro lado da avenida os turistas faziam a sua deliciosa caminhada matinal pela cidade dos marinheiros e das peixeiras de Alcântara.


Ao quinto quilómetro voltámos para trás. Cinco quilómetros para a chegada triunfal.


Triunfal. Não foi nem lapso nem é exagero. Chegar à Praça do Comércio, virar à esquerda, passar por baixo do arco triunfal, virar à direita, de novo à direita, de novo o arco triunfal, e a meta. Ali à frente.


Quando vi a meta, juro, vi alguém passar por mim, como se estivesse a fazer depender a sua existência daquele sprint louco.


Cinco quilómetros lá atrás, era chegado o momento chave da corrida. Estava a meio. Momento de fazer check-up.


Cabeça: check! É para ir até ao fim.


Pernas: check! ( se poupares até ao quilómetro sete, acelerares pouco ao oito, abrandares ao nono e bazares no último - a meta tem que se cortar com dignidade).


Pulmões: check. Respiram.


Estratégia: check. Duas garrafas de água no último abastecimento. Molhar as pernas. Os gémeos. São uns duros. As coxas. Vi algumas a correr, juro. A cara, bonitas e feias, a cabeça - esta parte não comento.


Com isto já via o Cais do Sodré lá ao fundo.


As pessoas aplaudiam, nas bermas. Foi uma constante. Ajuda. Só que lá anda é que sabe. É como quando se fala da casa dos Segredos ou do BB e dizem: "só quem está na casa é que sabe..."


É mais ou menos assim, nada de transcendente.


Foi aqui que tive o primeiro momento tocante. Neste instante em que corria e me refrescava para correr até ao fim.


Eu gosto das corridas porque gosto de falar com as pessoas.


Falo com desconhecidos, se me apetecer.


"Então, correu bem a prova?"


"Correu, fiz abaixo de uma hora..."


"Fez quanto?"


" 58 minutos..."


" Muito bom, eu fiz 59 e só tenho 44 anos..."


"Eu faço 78 no mês que vem".


Mesmo mesmo a chegar ao Cais do Sodré colo-me a três miúdas giras, com passada regular. Era o que eu estava a precisar. É uma técnica que ainda não domino; manter a passada regular, a corrida regular. Por vezes há uma ou outra música que ajudam, mas é raro. Dou por mim a correr ao som das músicas e esqueço-me que elas apenas servem para ajudar no processo, ele não depende delas. É um processo muito senhor do seu nariz.


Nas corridas tenho esse hábito, conforme me sinto, assim me junto a alguém, numa relação próxima - corro quase colado. Basta um olhar. Está entendido. Segue-se a marcha lado-a-lado até que alguém decida por si e se vá embora ou fique para trás.


Normalmente é a partir dos sete quilómetros que ganho resistência, até lá é sofrimento.


Por isso colo-me às pessoas. Apanho boleias de estranhos.


Gosto de correr e olhar para o chão. Para o horizonte, só quando me apetece. Não gosto de ser obrigado a nada. Nem na vida nem na corrida.


Quando levanto o olhar, naquele instante,  vejo à minha frente uma mulher e uma miúda.


A mulher devia ter uns quarenta. A miúda uns treze. Corriam, também elas, com um ritmo constante. A mais velha um pouco mais à frente. A mais nova, entre ela e eu e as minhas três companheiras momentâneas.


É quando reparo que a corrida parou. Parou tudo. Congelou a cena. Cores mil, paradas. Pessoas paradas. Enquanto a corrida se desenrolava. Faltavam três quilómetros para o fim.


Aquela dupla parecia ir acabar a corrida.


Eis quando, num instante surpreendente, a mais velha, na casa dos quarenta, deixa cair o braço direito para trás.


A mais nova estende-lhe o braço esquerdo. Encontram as mãos. Ela puxa-a. Puxa por ela, literalmente. Mesmo ali à minha frente, num gesto carregado de ternura, enquanto corremos. Eram mãe e filha, estou certo. Ternura daquelas só podem ser mãe e filha, se bem que na corrida a solidariedade é permanente.


Larga-lhe a mão e com a mesma mão empurra-a, com gentileza e carinho, pelas costas.


Ela ganha asas nos pés. Eu sorrio e sigo. Olha para trás, de forma disfarçada, envergonhada, mas sorrio, e sigo.


Passo no Cais do Sodré, vou feliz. O Cais do Sodré faz-me recordar a palavra feliz.


Está quase.


O Tejo já está ali ao meu lado.


Um quilómetros e pouco.


Vou-me embora.


Viro à esquerda, junto aos ministérios. O único erro. Penso que a meta é ali e acelero. Muito.


Fiz mal os trabalhos de casa.


A meta era ali mas ainda tinha uma volta para dar pela Baixa. Tive pena de não ver o marquês de Pombal a passear as suas girafas, os carvoeiros, os marinheiros, os barcos e as carroças. O Terreiro do Paço.


Mágico.


Passo por baixo do arco triunfal. Viro à direita, de novo à direita.


Por mim passa o tal jovem, numa louca correria. A vida dependia daquele sprint final.


De novo o arco triunfal. E a meta.


A meta corta-se com dignidade.


Acabei. Um segundo a mais que na última corrida de dez quilómetros, mas essa tinha subidas, esta não, mas para essa preparei-me, para esta não, não quis. Apenas quis passar uma manhã de domingo diferente, comigo e com os meus pensamentos.


Depois, atrofiei um bocado. Milhares de pessoas que tiram o chip dos ténis não é propriamente o cenário mais agradável, no fim de dez quilómetros de aventuras, quando apenas queres ver o rio.


Saltei as baias. Encontrei o Paulo. Tirámos uma foto.


Um abraço.


O regresso. Há sempre um regresso quando se parte.


Pelo caminho, até ao Rossio, abordei um casal que caminhava a meu lado e falámos de corrida e do prazer. Deram-me os parabéns por ter deixado de fumar.


No Rossio pedi um copo de água num dos restaurantes históricos.


O empregado estava em sentido, na esplanada, observando clientes e corredores, à espera de um pedido, um sinal.


"Claro que sim, venha comigo..."
"Estou assim, todo transpirado..."


"Venha, entre...O senhor não é jornalista na TVI?"


"É...sou!"


"É daqueles que eu ainda admiro, e vão sendo cada vez menos, posso tirar uma fotografia consigo?" (literal)


"Meu amigo, claro que sim, muito obrigado..."


"Óh Gomes, tira-me aqui uma fotografia com o senhor..."


"Quaresma..."


"É isso, Zé Quaresma"...


A parte que mais gostei, tirando o maravilhoso copo de água fresca, foi a parte em que tirámos a foto na esplanada e ele dizia:


"Gosto mesmo de o ver..."


E, depois, meio estranhamente virava-se para quem passava e para os clientes e, a rir, dizia:


"Foi ele que ganhou a corrida".


Por momentos senti-me um corredor de fundo. Nesta corrida não houve medalha, mas há sempre uma vitória.


Segui caminho.


Poucos metros mais à frente, a estação do Rossio à esquerda, a Praça à direita. Atravesso.


Páro. Detenho-me. Gelado.


Pela segunda vez, nesta manhã,  parou tudo. Um momento. Mais um.


Parei para tirar a foto que ilustra este texto.


Fiz questão de a tirar e de me mostrar. Fiz questão de não lhe mostrar a cara. Nem foi preciso pedir-me.


Tenho vergonha da minha cara.


No momento em que tirei a foto que ilustra este texto, no momento em que me detive, a corrida deu-me mais uma lição de vida, senti o outro lado da corrida.


A luz de Lisboa. Uma bela manhã de domingo.


O outro lado da corrida. A outra face da mesma moeda.


Era onze e meia da manhã quando tirei a foto que ilustra este texto.


Enquanto milhares de pessoas, vestidos com cores mil, vencedores, gente feliz, milhares que passavam como se ninguém ali estivesse. Não reparavam. Estava misturado com a multidão. Sózinho, ali.


Senti-me um derrotado.Momentos antes um campeão. Um derrotado.


Enquanto houver semelhantes e domingos destes serei sempre um derrotado. Por muito que a minha corrida chegue ao fim.


Domingo. Portugal, Lisboa, Rossio, 11,30am. Século vinte e um.