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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

20.10.14

CONVERSAS EM SEGREDO


The Cat Runner

IMG_2987.JPG


 


Parece que estou a imaginar a conversa entre os meus ténis de corrida. Especiais de corrida:


- O gajo ficou doido com isto das corridas...


- Achas?


- Agora até pede para lhe fazerem o horário para ir às provas. Ele nem gostava de provas...


- Mas aquilo é giro...


- Achas giro quase dois mil quilómetros na sola?


- Até parece! Não foste feito para correr?


- Fui...


- Tens que admitir que é giro. Domingo de manhã...


- Se estiver bom tempo...


- É verdade, mas mesmo com mau tempo...


- Com mau tempo não se vê nada...


- Claro que vê, mas com bom tempo são umas manhãs bem passadas...


- É muita miúda gira em calções...


- Pela fresquinha...


- Na última corrida...


( A conversa ia descambar)


É quando eu entro na varanda. Estão secos. Está ameno. O dia foi bonito. Eles não sabem que imagino as conversas. Fico na dúvida. Eu fico muitas vezes na dúvida.


- Então, porque é que te queixas?


- Não me queixo...


- Gostas de estar a falar, é isso...Tu gostas mesmo é de falar...


- Não... também gosto de correr. Também gosto de pessoas. 


Repara: ele começou a correr porque estava farto de ser pesado, física e emocionalmente...


- Vens com as filosofias?


- Espera. Escuta. Ele começou assim...


- Mas, sabes que quanto mais eles correm mais querem correr...


- Eu gostava mesmo era que ele fosse veloz, fogo...


- Às vezes ele é veloz...


- Depende da música que vai a ouvir, eu sei...


- E das pernas...


- Pois, mas nós é que temos que estar sempre em forma...Detesto quando ele pára ao quilómetro três e tal, lá no passeio ribeirinho...Porque é que ele faz isso...


- Só tu! Detestas ficar ali a contemplar o rio?...


- Sim, quando chove...


- Pá, deixa-te disso...


- É verdade...


- Ele tem cuidado...


- Eu sei, ele é cuidadoso, por isso é que às vezes se esquece de se concentrar no fundamental.


Não gosto quando ele vai lá fazer os aparelhos, porque ainda no domingo, andava toda a gente janota e, ele sujou-me todo com lama...


- Aquilo não era lama. E, eu vi que ele teve o cuidado de te meter em cima da tábua que estava no chão...


- Sim, mas sujou-me na mesma...


- Porque é que não dizes que ele, mal te viu com lama, te meteu dentro da poça de água? Isso não dizes.


- Estás sempre a defendê-lo...


- É mentira?


- Não...


- Então, cale-se...


- E corra...(ah ah ah ah)


Decidi deixá-los novamente na varanda. Continuam na varanda, pelo menos até ao fim desta crónica.


Quando for apanhar a roupa levo-os para dentro. Hoje não sei se vou correr. Já se vê. Eles não precisam de saber. Nem sequer que eu imagino-lhes as conversas. Eu gosto de imaginar conversas. Gosto de lhes fazer surpresas. Eles acham que quando chegarmos aos dois mil quilómetros vão ter o mesmo destino dos outros que estiveram antes deles.


Lamentavelmente, acho que foram para o lixo - ainda vou à arrecadação ver se estão lá e, se estiverem, vou fazer uma festa em sua homenagem. Foram os primeiros. Fizeram mil quilómetros. Depois desistiram. O tempo esgravata a borracha da sola. Abriram pelos lados. Estão, lamentavelmente, no lixo ou na arrecadação.


Não se deita fora nem se arrecada aquilo que nos liga ao coração.


- Agora vai correr mais uma prova no domingo...


- Acho que também vai correr outra vez uma meia-maratona no mês que vem. Medo (sorrisos).


- E não nos dá descanso...


-Descanso para quê?


Para depois estares dentro do armário a queixares-te. Já viste que és o único dentro do armário que se queixa, que está sempre a queixar-se. Aproveita a vida, homem.


- Eu não sou um homem, sou um sapato de corrida.


- Então corre...


- Tu achas que ele se vai livrar de nós quando fizermos dois mil quilómetros?


- Acho que não. Ele só muda de nível aos dois mil duzentos e cinquenta. (Eh eh eh eh ).


- Humor negro?


Aos dois mil duzentos e cinquenta quilómetros ou vamos para o lixo ou para a arrecadação...


- Querias o quê? Ficar numa moldura na sala?


- Não é justo.


- E foi justo para os nossos antecessores?


Olha os Adidas pretos, não saem do armário...


- O gajo apega-se a nós...


- A(pé)ga-se é lindo...


- Tens razão, coitados dos Adidas pretos...


- Mudemos de assunto que as pessoas são sensíveis e ainda vão comentar que há aqui qualquer coisa de racista na conversa.


- Mas achas que vamos para o lixo?


- Acho que não. Ele arrepende-se montes de vezes de ter deitado os outros para o lixo, os ténis, os primeiros telemóveis, os primeiros computadores, os gravadores, o gajo deitou tudo fora e agora arrepende-se, por isso acho que mesmo quando chegarmos ao fim vamos continuar com ele...


- Fogo..


- É, por muito que chegues ao fim regressas sempre ao começo. Há sempre um (re)começo.


- Pois há. Hoje o dia foi bonito.


- Digamos que foi um dia de recomeços.


- De descanso da alma...


- E das pernas...


- Sabes que mais? Vamos ajudá-lo no domingo...


- E depois na meia-maratona...


- Isso...


- Mas, olha que já ouvi dizer que ele nem se vai preparar como da outra vez...


- Então?


- Acho que no domingo e na meia-maratona no mês que vem vai só mesmo por prazer.


- Isso é o que ele faz sempre...


- Sim, mas vai só mesmo para viver o momento...


- E, tem razão. Há momentos...


- Para serem vividos...


- Para serem vividos...


- A ver se ele nos vem buscar à varanda que está a começar a ficar frio...


- Está-se melhor cá fora que lá dentro.


- Tirando os mosquitos...


- Mordem...


Sabes que só as fêmeas é que mordem...


- Ai é?


Então o melhor é correr, anda, vamos correr!