CONVERSAS EM SEGREDO
Parece que estou a imaginar a conversa entre os meus ténis de corrida. Especiais de corrida:
- O gajo ficou doido com isto das corridas...
- Achas?
- Agora até pede para lhe fazerem o horário para ir às provas. Ele nem gostava de provas...
- Mas aquilo é giro...
- Achas giro quase dois mil quilómetros na sola?
- Até parece! Não foste feito para correr?
- Fui...
- Tens que admitir que é giro. Domingo de manhã...
- Se estiver bom tempo...
- É verdade, mas mesmo com mau tempo...
- Com mau tempo não se vê nada...
- Claro que vê, mas com bom tempo são umas manhãs bem passadas...
- É muita miúda gira em calções...
- Pela fresquinha...
- Na última corrida...
( A conversa ia descambar)
É quando eu entro na varanda. Estão secos. Está ameno. O dia foi bonito. Eles não sabem que imagino as conversas. Fico na dúvida. Eu fico muitas vezes na dúvida.
- Então, porque é que te queixas?
- Não me queixo...
- Gostas de estar a falar, é isso...Tu gostas mesmo é de falar...
- Não... também gosto de correr. Também gosto de pessoas.
Repara: ele começou a correr porque estava farto de ser pesado, física e emocionalmente...
- Vens com as filosofias?
- Espera. Escuta. Ele começou assim...
- Mas, sabes que quanto mais eles correm mais querem correr...
- Eu gostava mesmo era que ele fosse veloz, fogo...
- Às vezes ele é veloz...
- Depende da música que vai a ouvir, eu sei...
- E das pernas...
- Pois, mas nós é que temos que estar sempre em forma...Detesto quando ele pára ao quilómetro três e tal, lá no passeio ribeirinho...Porque é que ele faz isso...
- Só tu! Detestas ficar ali a contemplar o rio?...
- Sim, quando chove...
- Pá, deixa-te disso...
- É verdade...
- Ele tem cuidado...
- Eu sei, ele é cuidadoso, por isso é que às vezes se esquece de se concentrar no fundamental.
Não gosto quando ele vai lá fazer os aparelhos, porque ainda no domingo, andava toda a gente janota e, ele sujou-me todo com lama...
- Aquilo não era lama. E, eu vi que ele teve o cuidado de te meter em cima da tábua que estava no chão...
- Sim, mas sujou-me na mesma...
- Porque é que não dizes que ele, mal te viu com lama, te meteu dentro da poça de água? Isso não dizes.
- Estás sempre a defendê-lo...
- É mentira?
- Não...
- Então, cale-se...
- E corra...(ah ah ah ah)
Decidi deixá-los novamente na varanda. Continuam na varanda, pelo menos até ao fim desta crónica.
Quando for apanhar a roupa levo-os para dentro. Hoje não sei se vou correr. Já se vê. Eles não precisam de saber. Nem sequer que eu imagino-lhes as conversas. Eu gosto de imaginar conversas. Gosto de lhes fazer surpresas. Eles acham que quando chegarmos aos dois mil quilómetros vão ter o mesmo destino dos outros que estiveram antes deles.
Lamentavelmente, acho que foram para o lixo - ainda vou à arrecadação ver se estão lá e, se estiverem, vou fazer uma festa em sua homenagem. Foram os primeiros. Fizeram mil quilómetros. Depois desistiram. O tempo esgravata a borracha da sola. Abriram pelos lados. Estão, lamentavelmente, no lixo ou na arrecadação.
Não se deita fora nem se arrecada aquilo que nos liga ao coração.
- Agora vai correr mais uma prova no domingo...
- Acho que também vai correr outra vez uma meia-maratona no mês que vem. Medo (sorrisos).
- E não nos dá descanso...
-Descanso para quê?
Para depois estares dentro do armário a queixares-te. Já viste que és o único dentro do armário que se queixa, que está sempre a queixar-se. Aproveita a vida, homem.
- Eu não sou um homem, sou um sapato de corrida.
- Então corre...
- Tu achas que ele se vai livrar de nós quando fizermos dois mil quilómetros?
- Acho que não. Ele só muda de nível aos dois mil duzentos e cinquenta. (Eh eh eh eh ).
- Humor negro?
Aos dois mil duzentos e cinquenta quilómetros ou vamos para o lixo ou para a arrecadação...
- Querias o quê? Ficar numa moldura na sala?
- Não é justo.
- E foi justo para os nossos antecessores?
Olha os Adidas pretos, não saem do armário...
- O gajo apega-se a nós...
- A(pé)ga-se é lindo...
- Tens razão, coitados dos Adidas pretos...
- Mudemos de assunto que as pessoas são sensíveis e ainda vão comentar que há aqui qualquer coisa de racista na conversa.
- Mas achas que vamos para o lixo?
- Acho que não. Ele arrepende-se montes de vezes de ter deitado os outros para o lixo, os ténis, os primeiros telemóveis, os primeiros computadores, os gravadores, o gajo deitou tudo fora e agora arrepende-se, por isso acho que mesmo quando chegarmos ao fim vamos continuar com ele...
- Fogo..
- É, por muito que chegues ao fim regressas sempre ao começo. Há sempre um (re)começo.
- Pois há. Hoje o dia foi bonito.
- Digamos que foi um dia de recomeços.
- De descanso da alma...
- E das pernas...
- Sabes que mais? Vamos ajudá-lo no domingo...
- E depois na meia-maratona...
- Isso...
- Mas, olha que já ouvi dizer que ele nem se vai preparar como da outra vez...
- Então?
- Acho que no domingo e na meia-maratona no mês que vem vai só mesmo por prazer.
- Isso é o que ele faz sempre...
- Sim, mas vai só mesmo para viver o momento...
- E, tem razão. Há momentos...
- Para serem vividos...
- Para serem vividos...
- A ver se ele nos vem buscar à varanda que está a começar a ficar frio...
- Está-se melhor cá fora que lá dentro.
- Tirando os mosquitos...
- Mordem...
Sabes que só as fêmeas é que mordem...
- Ai é?
Então o melhor é correr, anda, vamos correr!