BLOQUEIO TOTAL OU O PIOR DIA DO ANO
Hoje tive um bloqueio total. Fui ao tapete, com os queixos no chão. Cabeça, corpo, espírito. Tudo bloqueou, e o tempo prolongou-se por uma eternidade inédita e espinhosa. Foi, provavelmente, o pior dia deste malfadado ano.
Estou a falar sobre corrida. Sobre a minha corrida de hoje de manhã.
Sem ponta de ironia, quando Marco Fortes disse que de manhã era bom era na caminha, o mundo e com razão soltou as garras.
Confesso que o entendo. Não o entendi, mas agora entendo o que ele quis dizer nessa altura. A diferença é que não o devia nem podia ter dito. Tal e qual como eu em determinadas situações. Adiante.
Lembrei-me dele e dessa polémica frase porque hoje fui correr de manhã, antes de começar o dia, que é como quem diz por volta das onze.
Devo ter aquela doença do sono (vulgo tripanossomíase africana) e a outra que não te deixa sair da cama - dessa não sei o nome porque o Google só me deu aquele nome estranho, duas frase acima - porque até posso e gosto de acordar cedo, mas raramente consigo.
Fico preso à cama com correntes enormes e pesadas. Num ambiente artificialmente controlado, temperatura amena. Podia ser sintoma de depressão, não é o caso, de todo. É mesmo querer ficar a saborear o mundo lá fora, cá dentro.
São raras as vezes que me levanto para ir correr.
Psicologicamente é todos os dias: "amanhã, sete da manhã..."
Já fui, várias vezes. Correr pela manhã, prazer para os sentidos, todos.
Mas, custa-me soltar as correntes pesadas. Fazer o quê?
Um dia hei-de conseguir ser mais forte que a tal doença da qual não me recordo o nome.
Posto isto, como ontem não consegui correr hoje não dava para falhar.
Fazer aquela gestão do caos não é difícil, basta ir encaixando as peças, as horas, os acontecimentos, as tarefas.
Hoje era dia de jantarmos todos juntos. As agendas dos moradores cá de casa era comum, jantarmos juntos, por isso só conseguia correr de manhã.
Facilmente se percebe que durmo - quando posso - nunca menos de oito horas. Normalmente durmo entre seis a quatro. Custa-me muito mais correr, mas para ir a todas alguma coisa tem que cair. Mas descanso. Esteja descansado(a).
Lá fui.
Antes de sair de casa planeei o percurso mentalmente. Que tipo de corrida me apetecia fazer. Curta. Decidido. Dentro da cidade, campo, passeio marítimo ou naquele caminho das vivendas?, o caminho das vivendas.
Mais isolado - não gosto dos cães, ladram muito, dentro das vivendas - com menos carros e quase todo a direito e plano.
Seis quilómetros - corro sempre mais um - rápidos, só para rolar.
Os primeiros sintomas apareceram mal saí a porta do prédio: uma súbita vontade de voltar para trás.
Ainda dei uns passos, mas optei por uns raros alongamentos iniciais. Algo estava mal.
Da porta do prédio à porta de saída do condomínio onde vivo são mais de cem metros, ou por aí. Tentei começar, devagar, muito. Meia-dúzia de passadas e páro. A passo até à portaria.
Encaro a estrada, olho para um lado, depois para o outro, atravesso e começo.
Uns duzentos metros à frente nova quebra.
Era altura de tomar a única decisão aceitável e possível: ir até ao fim como planeado. Tinha pouco tempo para correr. Tinha no máximo quarenta e cinco minutos. Seis quilómetros, já estava a abdicar daquele quilómetro extra.
Comecei a sentir as dificuldades a intensificarem-se à medida que ia avançando. Ponderei encurtar para quatro quilómetros, mas quatro quilómetros é aquecimento. Pelo menos seis, sabiam a pouco mas dava para encarar o dia com aquela tranquilidade.
Ao primeiro quilómetro tinha gasto quase sete minutos e meio. Tempo de principiante, que é o que sou, os meus melhores tempos são verdadeiros milagres. Sorte de principiante. E muitos quilómetros nas pernas.
Está decidido, mais um quilómetro e volto para casa. Fico-me nos quatro.
O problema foi chegar ao segundo quilómetro. Os sete minutos estavam a parecer-me uma hora. O quilómetro uma daquelas maratonas que nunca corri.
As pernas decidiram parar. Os pulmões divertiam-se, ora se cansavam, ora se abriam. A cabeça começava a questionar-se. Os braços mexiam, já não era mau.
Ao segundo quilómetro tudo era claro. O bloqueio era total. Estava prestes a ter o meu pior dia de sempre desde que corro. Sentia-o. E tudo me passou pela cabeça.
Corri uns quatro quilómetros, entremeados com outros três de caminhada. Sete, no total. Quase cinquenta minutos, ou coisa que valha.
Não corri. Hoje o que aconteceu foi uma espécie de descida ao ponto de interrogação mais profundo. A procura de uma resposta. Cinquenta minutos cheios de pontos pretos de interrogação.
O que é que me estava a acontecer?
Não me considero um atleta. Mas estou certo que estou preparado para correr até ao dia em que deixe de conseguir correr. A manhã de hoje não estava a fazer qualquer sentido. Nem quando comecei, há um ano, sofri tanto numa corrida como hoje. De repente o tempo não estava a correr. Eu não estava a correr. Como se nunca tivesse corrido.
Bem sei que os bloqueios são as verdadeiras chagas de quem gosta tanto de correr. Acontece regularmente. Um pouco como os sismos. A Terra treme em permanência, ainda bem, assim não "parte". Quando um dos sismos é de maior intensidade, já se sabe. A metáfora para o que me aconteceu hoje é esta.
Bloqueei dos pés à cabeça, por dentro e por fora. Parei no tempo. O tempo parou. Parar. Parar. Só me apetecia parar. Lembrava-me de coisas que li sobre o prazer e o sofrimento, sobre a corrida e a vida, lembrei-me dos meus amigos que correm maratonas e ultra-maratonas, lembrei-me da minha fantástica meia-maratona - para um principiante foi fantástico - lembrei-me que estou formatado para correr até vinte e poucos quilómetros.
Não fazia sentido o que me estava acontecer. O que me aconteceu.
Apelei ao sol, estava sol, saltei músicas no iPhone, alonguei, transpirei, caminhei, corri, tão pouco, tão difícil.
Terminei a passo.
Sete quilómetros a uma média de quase sete minutos por quilómetro. Até nem é uma média assim tão desenquadrada, para mim, mas é como aqueles jogos de futebol equilibrados que acabam com uma equipa goleada.
Esta média não tem nada a ver com a realidade.
A realidade é o que acontece durante a corrida, não é só o tempo que fazes, a forma como corres e respiras, o que observas e escutas. É isso e tudo o que o teu corpo ordena.
A cabeça manda mais. Hoje, até ela decidiu encostar-se e dificultar-me a vida. Uma cabala. O Universo unido contra mim.
Juro que vou ler mais ainda sobre os "bloqueios mentais e outros". Tenho que perceber e descodificar esta estranha viagem.
À noite, no regresso a casa, como habitualmente, fiz a viagem mental do meu dia. Gosto de perceber onde estive bem e menos bem, de me descentrar, sair de mim e auto-observar-me na relação com os outros. É uma rotina.
Claro que a minha corrida marcou presença. Quase que me apetecia ir correr de novo. Andei ali às voltas à procura da resposta.
Os meus músculos ainda se estão a queixar de tão estúpida corrida matinal.
A pior de todas.
Encontrei respostas para todas as questões que atravessaram o meu dia. Menos uma.
Sobre a minha corrida matinal, duas coisas, para fechar o assunto:
Não fui feito para correr de manhã.
De manhã é bom é na caminha.
Afinal são três coisas;
Vou bloquear pessoas no Facebook, sempre é mais agradável que estes bloqueios mentais, já que correr está fora de questão.
Detesto minutos cheios de pontos pretos de interrogação.