ROOM 215
E pronto; já estou dentro do combóio. Está na hora de partir.
Vamos a caminho de casa.
O Porto fica para trás. Ponto de passagem.
Há fins de semana que não deviam terminar.
Tudo acaba e é aqui que começa esta crónica. No fim da viagem que acaba de começar.
Um fim de semana no Douro.
Nunca tinha vindo ao Douro. O Porto serve de ponto de passagem. O Douro recorta-se mais acima.
Régua, Pinhão, Tua.
Decidimos fazer esta viagem por dois motivos - na verdade três:
1- Faz bem um fim de semana a dois.
2- Correr no Douro deve ser experiência única.
3- Três dias sem carro. Só combóio.
Em relação ao ponto 1, não parece ser relevante para quem lê, passo.
Em relação ao ponto 3, a CP mesmo em tempo de crise consegue ser criativa e colocar à disposição de quem quiser uma viagem de combóio, a partir de qualquer ponto do país e fazer a linha do Tua no combóio histórico. Acaba dia 15, mas vale muito a pena, por tudo.
Sobre o ponto 1 e o ponto 3 irei escrever mais à frente, naturalmente, quando falar do ponto 2. Não que me apeteça, mas faz parte. Já vai perceber porquê!
Correr.
Como já reparou - se é que se dá ao trabalho de ler o que por aqui se escreve - este blog é uma máquina de escrever. Escreve sobre tudo.
Como qualquer enamorado, em processo de enamoramento, este blog está a perder em auto-controle aquilo que está a ganhar em auto-estima.
O dono do blog mudou de religião. O blog, fiel ao dono, está a mudar também.
Nos últimos tempos tem se falado muito de corrida por estas bandas.
É por aí que este blog está a caminhar, a correr, as corridas, tudo o que envolve as corridas e é tanto.
Correr é viajar muito, muito intensamente.
As minhas Desconcertezas passam a ter um fio de prumo. Alinhadas.
Este blog vai continuar a escrever sobre tudo, mas vai escrever sempre sobre corrida.
A minha nova religião tem tanto de fanatismo, como de paixão, como qualquer religião.
Por isso, vai ser aqui que cada crónica será sempre uma analogia entre a vida e a corrida. Uma faz parte da outra. Para mim faz.
É por isso que os pontos 1 e 3 não são determinantes enquanto informação, mas fazem parte da construção da narrativa.
Não é fácil escrever num combóio em andamento, aviso já. (Chegámos a Coimbra B, no momento em que faço a correcção nesta frase - nunca percebi o porquê de Coimbra B).
O Porto é passado.
Cada momento em que escrevo, em que "teclo", encaixa-se no ritmo da música que ouço. Escrevo aos pulos. Batida a batida. O combóio pula, as mãos pulam, as teclas pulam e eu encosto-me.
Aproveito as paragens, mas este combóio pouco pára. A vida não pára. Como nas corridas, a vida não passa de algumas pedras, às vezes, na pista que se quer lisa, suave. Apenas pedras pequenas que desaparecem a cada passada.
Passo de novo pelo Porto para regressar à Régua, enquanto volto para Lisboa e estou parado em Coimbra B.
A confusão instalou-se. Na minha cabeça. Não chega a ser confusão. Bom, primeiro instalou-se, depois deu lugar a um estranho lugar na minha cabeça.
Deixei de ter capacidade para perceber se a corrida me leva ou se eu corro porque quero ir.
Tem isto a ver com este fim de semana fantástico no Douro. No Douro verdadeiro. No Douro fantástico.
As motivações que nos levam a escolher destinos, viagens, locais, são milhares. Vamos pela comida, pela natureza, pela cultura, pela diversão, vamos porque vamos. Apenas por ir.
Tudo o que fazemos depois adapta-se.
Tem sido assim as minhas viagens. Ao longo da vida.
Vou com um propósito. Tudo o que tenha que fazer extra propósito encaixa-se. Não é prioridade, tal como as pequenas pedras que se atravessam no caminho e que são chutadas a cada passada. Desaparecem.
Se bem se lembra mudei de religião.
São mudanças profundas.
Reflexões que dão lugar a comportamentos, atitudes que se refazem.
Esse processo em que alguma lógica se inverte é carregado de mudança. A quantidade não releva. Mudança, apenas.
Descobri, neste fim de semana no Douro, que manda a minha religião, colocar o prazer da corrida no topo das prioridades. Tudo o resto adapta-se. Inverter a lógica. A lógica tem sempre lógica e assim será.
No sábado - ontem - acordei cedo.
Às nove e meia estava a tomar o pequeno almoço. Uns ovos, pouco pão, um ou dois doces, pouca fruta, sumo, café, muito, sem açúcar. Água.
Adoro tomar o pequeno almoço nos hotéis, de calções, havaianas e t-shirt.
A sexta feira serviu para fazer a viagem desde Lisboa, descansar, aproveitar.
O Sábado tinha uma agenda definida, mas com espaço para fazer tudo o que tivesse que ser feito.
Já não consigo viajar sem o equipamento e os ténis, os phones e a bolsa. É obrigatório. Nem que a viagem seja de casa para a TVI...
Subi ao quarto e equipei-me.
Desci e comecei a correr.A música isola-me do mundo exterior. Tem efeito imediato. É ela que me ajuda a seguir viagem.
Saí pela esquerda, uma descida íngreme para começar. Óptimo. Gosto de descidas. Quanto mais alucinantes melhor embala.
Desço a rua, contorno o hotel pela esquerda, entro na pista.
Ao meu lado direito - finalmente - o Douro. O ar está fresco, os primeiros raios de sol começam a torná-lo mais e mais acolhedor. É sábado, mas parece uma daquelas manhãs de domingo que adoro.
O rio, as margens desenhadas em socalcos.E barcos que descem. Barcos que passam. Tudo é tão transitório.
Ao meu lado esquerdo as traseiras do hotel, primeiro, árvores, sombras, relva a seguir.
Até às pontes perto de um quilómetro escoltado pela beleza esmagadora das encostas, o embalar do rio e o verde ali ao lado.
Por baixo da primeira ponte uma curva à esquerda. Uma subida que obriga quase a ir a passo. Inesperada. Estava planificado um circuito mental para os meus seis quilómetros de sábado.
Correr em redor desta pista que do lado de cima mistura a estrada com a confusão da cidade e em baixo a natureza bela. Estado quase bruto.
Como se o hotel e tudo o que lhe seguia fosse um gigantesco quarteirão.
Do lado de cima a estrada, do lado de baixo a pista e o rio. Correr à volta.
Ao fim de cada volta uma descida e de novo ao fim uma subida. Há sempre que subir quando se desce e às vezes desce-se muito. As subidas tornam-se mais duras. Desafiantes.
Meia-dúzia de voltas. Subir, descer, estrada, plano, pista, rio, em círculos.
(Ainda passei depois pelo ginásio)
A minha corrida de sábado junto ao Douro fez parte do meu fim de semana de higiene mental. Foi a parte fundamental. O "momento".
Cruzei-me com pescadores de fim de semana, sentados na margem de cá. Gente que corria mais rápido do que eu, gente apenas a caminhar. Claro, gente com cães - porque raio esta gente acha que as pistas são para os cães - e crianças.
Risos, vozes altas, gente baixa. Baixinha.
Na parte de baixo do meu percurso de sábado, na pista, junto ao rio, bem a meio, havia um pequeno parque infantil. As crianças brincavam aí.
Ao longo da margem bancos em cimento.
Fiquei com aquela sensação que quando terminava a subida que começava por baixo da ponte e contornava a esquina para descer ao hotel para á em baixo voltar pelo mesmo caminho, os senhores da loja de rações já me conheciam.
Passei ali umas quatro ou cinco vezes. A confiança foi aumentando (rir, sff).
Enquanto corria, eles bebiam uma Mini matinal e fumavam um cigarro.
Falavam do Euromilhões, que em uma das vezes eu consegui escutar.
,Sempre que passava eles baixavam o tom e miravam-me como que a pensar "o que anda este maluco aqui a fazer às voltas?"
Às onze da manhã já estava completamente noutro patamar da minha existência.
Nada para perturbar o ambiente. Tudo perfeito. Alongamentos. Muitos. Novo.
Descanso. Leitura. Sol na varanda com vista para as Caves Sandeman, para o rio e para a pista.
O fim de semana estava apresentado: eu não tinha ido ao Douro e à Régua para ir fazer uma viagem no combóio histórico da CP.
Eu tinha idoao Doutro e à Régua porque aprendi a ter prazer em correr em sítios bonitos.
Essa é a viagem. A minha viagem. A partir de agora vou correr em sítios que escolho. A viagem vem depois.
Foi por isso que quando entrámos no combóio, depois de uma manhã tranquila, e fizemos a viagem até à estação do Tua, com paragem no Pinhão, me pareceu como que o "prémio de presença".
Eu já estava integrado com a paisagem, apesar de ser esmagadora. O tempo parecia ter parado.
Agora era uma de várias peças que se iam encaixando como elos de uma corrente.
Parado no tempo. O tempo parado em mim.
Uma carruagem carregada de história, gente vestida ao passado, cantando esganiçadas notas, acompanhadas pelo acordeão.
Porto Vintage, rebuçados de Lamego.
O vinhedo. As encostas. Tons amarelos e castanhos, verde e azul.
Parado no tempo.
A viagem. O regresso.
A minha companhia atirou: " vais provavelmente ao melhor restaurante onde alguma vez estiveste".
Normalmente ela não se engana. Tem gosto refinado. É uma mulher bonita. Gosto de mulheres bonitas.
Subimos as escadas. Atrás do balcão, um jovem.
À minha frente, um menino.
Nunca fui recebido num restaurante - em toda a minha vida - com tamanha delicadeza, simpatia, vontade.
"Mesa para dois? Junto à janela? Não sei se tenho, mas vou ver, por favor, queiram acompanhar-me. Afinal sim, uma mesa junto à janela. Tenham a bondade. Um excelente jantar".
A minha companhia atirou:
"Então..."
Fiquei ali, pasmado.
O Douro In é um dos melhores restaurantes onde alguma vez jantei. É um facto. E, este empregado é o melhor empregado de mesa que alguma vez me atendeu.
O dia correu tão suave, tão feliz, tão intimamente ligado, que tive que fazer alguma ginástica mental para não passar o jantar a observar aquele Cristiano Ronaldo das mesas.
Disse-o à minha companhia: " aquele empregado é um miúdo, não tem cara de adulto. Se for um miúdo é o Cristiano Ronaldo."
Disfarçadamente, enquanto os pimentos Padrón iam acompanhando os míscaros grelhados e alheira com cama de espargos, eu reparava na forma como ele abria as garrafas de vinho, o cuidado, a subtileza a servir. A mão atrás das costas.
O meu Pacheca Superior Branco estava deliciosa e estupidamente gelado.
Não resisti a perguntar a idade. Não a ele. Nem o nome.
A empregada que nos atendia parecia a Pipi das Meias Altas. Tinha o cabelo igual e a cara sardenta.
Perguntei a ela. A idade dele. Inspirava-me confiança. Ela, igualmente excelente.
"Dezasseis anos, está a estagiar", respondeu-me.
Fiquei abismado.
Um dia vamos ouvir falar deste puto da Régua, a quem não perguntei o nome. Acho que com esta idade pode trabalhar no melhor restaurante do mundo quando quiser. Será cobiçado pelos melhores, pago a peso Douro.
Uma viagem.
Estou de regresso à cidade das pedras no caminho. O Porto ficou lá atrás, no passado. Ao Douro hei-de voltar. As luzes na carruagem estão meio apagadas, acolhedora luz. Há silêncio.
Há quem durma. A Joana vai lá mais à frente, que coincidência, a Joana na mesma carruagem.
A minha companhia, de sempre, vai ao meu lado, como sempre.
Só ainda não a convenci a começar a correr, mas está quase.
É que há viagens que são irrepetíveis.
Correr é estar a viajar. É sair do lugar.
Vou desligar o computador e dormir um pouco.
De certeza que alguém em acorda quando eu chegar, desta viagem, desta corrida.
É que o combóio não pára em todas as estações. A vida também não.