A MINHA PRIMEIRA MEIA MARTONA OU O DIA EM QUE CHEGÁMOS AO FIM
Esta é a última crónica sobre a minha primeira meia maratona.
Amanhã volto aos meus devaneios e tanto que tenho para escrever.
Quanto mais conheço as pessoas mais apaixonado fico. Depois, a desilusão da vulgaridade, mas isso não é para hoje.
Depois de uma viagem fisiologicamente apertada, já em condições normais, depois de sair do autocarro, tinha agora uns minutos, poucos, para chegar à linha de partida.
Mesmo para verdinhos (literalmente) como eu é importante partir na cabeça da corrida, sob pena de perder uns largos minutos a andar por entre todos aquelas que não correm.
Vinte minutos. O tempo que tinha até até chegar à partida.
O João atava os ténis. O João é polícia. Das Brigadas. Treina sózinho, em casa, na rua. O João é meu amigo e pai de um colega do meu filho.
Tinha tanto de provável como de improvável encontrar alguém conhecido entre os mais de vinte e três mil doidos que subiram à ponte!
Encontrei vários...
Mas, foi o João quem me fez companhia até à partida.
Fomos caminhando, já ansiosos, falámos dos tempos que queríamos fazer, de como nos sentíamos. Foi rápido. Chegámos à linha de partida praticamente quando a corrida começou.
- "Grande abraço, João, dá-lhe", gritei. E, começámos a correr.
Cruzei-me com o João mais tarde, já eu tinha passado a estação de Santa Apolónia, já ele estava a voltar. Corre mais do que eu, mais rápido, há mais tempo. É mais novo.
Tinham-me dito para correr de trás para a frente, quer dizer; começar devagar e guardar-me para o fim.
Dizia-me a pouca experiência de corridas que o início é muito rápido. Vamos na onda. Numa prova curta podemos recuperar, numa prova longa como a meia maratona, correr muito rápido no princípio pode revelar-se fatal no fim. Era a minha primeia meia maratona. Estava doente. Não queria fazer muito má figura.
Segui os conselhos. A seguir à ponte a primeira descida. Aproveitar para relaxar, embora tivesse quase quilómetro nenhum nas pernas. Fui deixando ir o corpo solto até chegar cá a baixo à rotunda.
Os primeiros cinco quilómetros estavam a correr muito bem. Ia fazer meia-hora. Ritmo de seis minutos por quilómetro. Podia ter feito bastante menos. Estava bem. A manhã estava como gosto, fresca e bonita.
Mas, faltavam ainda uns longos dezasseis quilómetros. Deixa ver como corre até aos dez.
Foi quase na zona da Matinha - já a Expo estava para trás - que comecei a colocar em prática os planos mentais. Com dois pontos de abastecimento feitos, água sempre à mão, aos quatorze quilómetros decidi tomar o gel que levava comigo.
Ganhei asas.
Corri sózinho, mas na verdade nunca corri sózinho.
Fui indo enconstado aqui, encostado ali, a olhar para os pés de uns, para os rabos de outras. Sim, para distrair, não vejo mal. Não toquei. Não mexi.
Fiz os primeiros dez quilómetros a tentar ver se via o Filipe Mendonça que estava a correr a Maratona e já vinha de Cascais. Chegado ali à zona de Santa Apolónia desisti e decidi concentrar-me no que estava a fazer, eis quando baixo a cabeça ouço aos gritos: Zééééééééé...
Era ele. Filipeeeeeeeee....
Quase caíamos os dois embrulhados nos que corriam junto a nós. Para ele não sei, para mim foi o que faltava. O incentivo que faltava.
Depois ainda voltei a ver o João, com quem me tinha cruzado na partida.
Quando corres uma meia maratona e viras os dez quilómetros sabes que é a partir daí que a prova fica realmente dura.
Preparei-me a seguir aos dez quilómetros. Tinha rolado lento. Estava fresco. Sem dores. A gripe ficou para segundo plano. A gripe estava KO.
É a partir dos quinze quilómetros que as pernas viram blocos de cimento pesado. Incrível, a seis quilómteros do fim - seis quilómetros é para aquecer - e sem forças nas pernas. A cabeça manda, elas não cumprem. Estranhamente, à passagem pelo décimo quinto quilómetro aconteceu o inesperado: não houve bloqueio!
Essa estranha sensação deu-me asas. Por pouco tempo. Nunca me tinha acontecido.
Quilómetro dezoito. Cheira a meta. Cheira a fim. Cheira a objectivo cumprido. Três simples quilómetros, que em ocasiões especiais são corridos em quinze/dezoito minutos, ali tão próximos, mas tão absolutamente quase impossíveis.
Tive que ir buscar forças ainda não sei bem onde para os próximos três quilómetros.
"Zé, raiva meu. Não pode. Vai. Vai. Não pode", dizia-me a mim próprio.
Até ao décimo nono quilómetro só me interessava manter o registo abaixo dos seis minutos. Nessa altura já sabia que ia bater os meus melhores tempos alguma vez sonhados. Ia feliz.
Entrei no quilómetro vinte. A meio da corrida emocionei-me. Quando passei pelo Filipe - chorei sim - e quando me lembrei do meu amigo Vitor, que foi a enterrar na véspera.
Faltava um quilómetro. Estava com as pernas a começar a doer. Os gémeos tinham dado sinal três quilómetros antes. Pensei: que vergonha, agora que é só gente nas bermas é que vais começar a andar?
Na verdade, ao longo da corrida - a primeira que fiz sem parar, sem andar, sempre a correr - tive vontade imensas vezes de simplesmente parar ou apenas caminhar. Quase quase.
Pensei depois: estou aqui para correr. Correr muito. O que conseguir. Não estou aqui para andar nem para estar parado. O tabaco, ter deixado de fumar dez dias antes fez toda a diferença, garanto.
Digamos que faltavam uns oitecentos metros.
As palmas e as palavras de incentivo que gritavam desde a berma estavam a fazer aumentar a passada. Cem metros mais à frente vejo o Miguel Guerreiro. Já antes me tinha cruzado com ele na corrida. Acabou a Maratona abaixo das quatro horas - como o Filipe - heróis de carne e osso, garanto.
O Miguel decidiu gritar-me e dar-me um "five"...
Foi uma espécie de Power Song final.
Arranquei como se estivesse a começar a corrida. Tão louco ia que comemorei a minha vitória antes do tempo, numa zona em que me parecia a meta. Só depois olhei e vi o relógio e a meta uns cem metros mais à frente.
Entrei na recta final qual queniano meio anafado, um tudo nada mais claro, mas igualmente rápido naqueles cem metros.
Cortei a meta com os braços no ar e lágrimas nos olhos. Ninguém sabe o que o dia de ontem significou para mim.
Ele não se resumiu à minha mais fantástica corrida de toda uma vida.
Ele representou uma radical mudança.
Na forma como olho os outros, como me relaciono, como me decepciono, como me alegro com as pessoas. Ontem, tudo equacionei. Ontem foi dia de corrida, de grandes decisões, de grandes e profundas mudanças.
Ontem, aprendi estar longe do que faz mal. Dos interesses. Das inverdades. Há mundos que não são o meu. Nem me permitirei jamais voltar a entrar neles. Aprendi isso. Eu gosto de aprender.
É que ontem também eu estive no paraíso.
E, no paraíso, na minha corrida mando eu. Como na vida. Eu decido quando abro e fecho portas, quem entra quem sai, quando entra quando sai. Quando eu quero. Eu, como quando corro. Apenas eu.
Ontem, a corrida ensinou-me que há mais preocupação, mais afecto, mais dedicação, mais estima, mais incentivo, menos, mas muito menos interesses quando se corre do que na vida.
Na corrida, ninguém se conhece, ninguém tem nada para ganhar, a não ser os que vão para ganhar. Não são vitórias. São verdades individuais que se transformam em objectivos pessoais. Atingidos com trabalho e não a qualquer preço.
Na vida colecionam-se medalhas. Exibem-se troféus, mas dificilmente se corta a meta com os braços no ar.
A minha vitória foi chegar ao fim, com o meu melhor tempo de sempre, na minha primeira meia maratona oficial.
O meu troféu foi uma medalha, que aos meus olhos, é a mais bela do mundo.
Eu nunca fui uma medalha.
Talvez por isso não tivesse ninguém à minha espera à chegada.
Deixei que a menina me colocasse a medalha ao pescoço. Senti-me Campeão. Ela estava lá à minha espera. Não só, mas também!
Vi um pouco dos UHF que cantaram Zeca Afonso e fui à minha vida.
Pelo meio, o que me acontece sempre, seja onde for, nas aulas, na rua, no centro comercial, no café: olha o Quaresma da TVI, pode tirar-nos uma foto? Pode tirar uma foto connosco?
Digo que sempre que sim. Digo sempre sim a quem me aborda.
Ao início impressiono muito. Depois perdem o interesse. Felizmente. São as águas que se separam naturalmente!
Não tinha ninguém a minha espera na chegada, mas vi o Alexandre Évora, e tirámos uma foto, não vi a Rita nem o Filipe, afinal eramos mais de 23 mil, mas vi as fotos.
Foi um dia especial para todos. Um dia em que todos fomos vencedores perante a vida e o desafio que quisemos enfrentar. É sempre, sempre uma questão de opção.
Vinte e três mil e eu.
Amanhã volto a outros devaneios. As crónicas sobre a minha primeira meia maratona acabam aqui.
Amanhã vou escrever sobre Anjos com alma de Diabo. Sem asas.
Daqueles que voam baixinho apesar de pensarem em altos vôos.
Mas, isso é amanhã.
Por hoje, dizer apenas - vou repetir-me - que esta alucinação que durou uma semana não é da minha responsabilidade. É da gripe.
A gripe não mente. Nem eu!
(Agradeço: Ana Sofia Vinhas, Raquel Matos Cruz, Filipe Mendonça, Joana e Nuno Malcata, Ana Morais, Rita Rodrigues, Correr Na Cidade, Nuno Francisco e Fitness Hut e pouco mais. Agradeço também aos amigos que não conheço pessoalmente, mas que conheço do Facebook. Não é preciso conhecer pessoalmente para sentir essa amizade. Agradeço o facto de me terem empurrado até aqui - se me esqueço de alguém peço desculpa-. Agora é comigo. Obrigado. A próxima há-de ser numa capital europeia, é um sonho, sim, eu também sonho)