A MINHA PRIMEIRA MEIA MARATONA OU A HORAS DA HORA EM QUE TUDO MUDARÁ
Faltam menos de vinte e quatro horas.
"Vais ver que nunca mais te vais esquecer do dia de amanhã".
Foi o comentário escrito pelo Filipe na crónica antes desta.
Páro. Páro para pensar no que vou escrever a seguir.
Escuto a música. Tenho que ir meter músicas novas no iPhone. É a sua primeira meia maratona. Quero que esteja a rigor. A música conta e, ele é novo, eu sou novato, é diferente.
Dizem que deves mudar toda a "play list" antes de uma corrida deste género. Faz sentido. Sentir e encarar esta corrida para lá de qualquer corrida obriga a mudanças radicais. Porque foi nisso que ela se transformou; em algo para lá da corrida, que só depois de a terminar conseguirei explicar. Se conseguir.
Depois de escrever atiro-me de cabeça às músicas. Tudo tem o seu momento.
Já passei muitos domingos em muitos sítios do planeta. Ser jornalista tem (tinha) isso; as viagens, e as viagens são quase tudo.
Sei, por isso, que os domingos são iguais em qualquer parte do mundo. A manhã, o fresco aconchegante, a luz. Até as tardes e as noites.
Lisboa tem luz. A tal luz especial. Preciso de luz. A luz!
Amanhã, domingo, pela manhã, vou sentir a luz de Lisboa.
Curioso, sei a luz de tantos domingos, mas só amanhã vou apreciar a luz de Lisboa pela primeira vez. E, correr.
Hoje é por assim dizer o dia da reflexão. Não é dia de reflexão. Não confundir.
Tinha-me proposto correr hoje. Desaconselharam.
Faz sentido. Ia saber bem, ajudar na gripe - está decidido, corro com gripe -, mas ia desgastar os músculos já desgastados. Descanso.
É o que tenho feito o dia inteiro. Dez horas de sono. Uma sesta. Esta crónica, e continuo na rede. Na cama de rede.
Está uma tarde de sábado domingueira.
Há aqui qualquer coisa de litúrgico, celebração.
Isso, celebração da vida.
Há aqui qualquer coisa de religião - logo, há aqui qualquer coisa de fanatismo - correr num bosque, numa cidade com Luz como a de Lisboa, ou junto a um rio, é como estar numa catedral, em plena liturgia. Os ritos. Os rituais, O isolamento interior. Os acontecimentos. O silêncio. O Voto.
Será por isso que amanhã será um dos domingos da minha vida. O Filipe tem razão.
Nas últimas horas o mundo parece ter começado a girar ao contrário. Aconteceram muitas coisas estranhas.
Parece que é de propósito.
Quando faço bicicleta no ginásio surpreendo quem me observa quando começo a pedalar para trás.
Uma vez expliquei: se os chineses que vivem no meu condomínio andam à retaguarda, movimentam-se ao contrário, para contrariar os movimentos habituais e rotineiros do corpo, porque é que eu não podia rodar cinco minutos ao contrário...
Acho que entenderam.
Isto é: estou habituado a que as coisas girem ao contrário.
Mas não assim.
Tirei o dia para mim. Para descansar. Para me afastar das coisas que me incomodam. Para pensar. Pensar no que tem sido. Pensar no que quero. Pensar no amanhã, literalmente, mas não só.
Sim, será um dia especial.
Todos os domingos foram especiais. Este domingo será o mais especial de todos por motivos que não consigo traduzir em palavras. Logo eu que me apresento como Técnico Instalador de Palavras.
Depois da minha primeira meia maratona prometo ir fazer o terceiro curso de escrita.
Agora vou entrar em processo de isolamento, hibernação.
Preparar tudo ao detalhe. Inclusivamente acertar três despertadores.
Planear mentalmente o trajecto até à linha de partida - pelo meio vou antever o som do tiro de partida - os ténis, os calções, a camisola, o gel, as gotas, o iPhone, os phones, o Ipod mini - que o meu tempo será registado pela minha app. É ela que me acompanha desde sempre e por isso quero poupar a bateria ao telemóvel. Vou desligar tudo. Ouço música ni iPod mini que quase não se vê e que se prende com uma mola nos calçoes.
Não quero ter que arranjar nada de manhã, já me basta ter que ir meter gásoleo.
A chave do carro. O pequeno almoço. A que horas acordar. Água. Onde deixar o carro. Tempo de viagem.
A música. Muita música.
Os combustíveis trazem aditivos e tornam-se mais eficazes.
Eu ouço música e adapto a corrida ao que ouço. Sou eu quem decide. Ela também é combustível.
Se eu fosse combustível era Jet Fuel. Nem pestanejava.
É que ontem treinei junto ao aeroporto e hoje estou com os motores em aquecimento. Influências.
Amanhã é dia de voar, num tapete mágico e inesquecível.
Voar sem sair da terra que está a girar ao contrário.
Com esperança que no fim tudo volte ao normal. Com a certeza que no fim nada será como antes.