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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

04.10.14

A MINHA PRIMEIRA MEIA MARATONA OU A HORAS DA HORA EM QUE TUDO MUDARÁ


The Cat Runner


 


Faltam menos de vinte e quatro horas.


"Vais ver que nunca mais te vais esquecer do dia de amanhã".


Foi o comentário escrito pelo Filipe na crónica antes desta.


Páro. Páro para pensar no que vou escrever a seguir.


Escuto a música. Tenho que ir meter músicas novas no iPhone. É a sua primeira meia maratona. Quero que esteja a rigor. A música conta e, ele é novo, eu sou novato, é diferente.


Dizem que deves mudar toda a "play list" antes de uma corrida deste género. Faz sentido. Sentir e encarar esta corrida para lá de qualquer corrida obriga a mudanças radicais. Porque foi nisso que ela se transformou; em algo para lá da corrida, que só depois de a terminar conseguirei explicar. Se conseguir.


Depois de escrever atiro-me de cabeça às músicas. Tudo tem o seu momento.


Já passei muitos domingos em muitos sítios do planeta. Ser jornalista tem (tinha) isso; as viagens, e as viagens são quase tudo.


Sei, por isso, que os domingos são iguais em qualquer parte do mundo. A manhã, o fresco aconchegante, a luz. Até as tardes e as noites.


Lisboa tem luz. A tal luz especial. Preciso de luz. A luz!


Amanhã, domingo, pela manhã, vou sentir a luz de Lisboa.


Curioso, sei a luz de tantos domingos, mas só amanhã vou apreciar a luz de Lisboa pela primeira vez. E, correr.


Hoje é por assim dizer o dia da reflexão. Não é dia de reflexão. Não confundir.


Tinha-me proposto correr hoje. Desaconselharam.


Faz sentido. Ia saber bem, ajudar na gripe - está decidido, corro com gripe -, mas ia desgastar os músculos já desgastados. Descanso.


É o que tenho feito o dia inteiro. Dez horas de sono. Uma sesta. Esta crónica, e continuo na rede. Na cama de rede.


Está uma tarde de sábado domingueira.


Há aqui qualquer coisa de litúrgico, celebração.


Isso, celebração da vida.


Há aqui qualquer coisa de religião - logo, há aqui qualquer coisa de fanatismo - correr num bosque, numa cidade com Luz  como a de Lisboa, ou junto a um rio, é como estar numa catedral, em plena liturgia. Os ritos. Os rituais, O isolamento interior. Os acontecimentos. O silêncio. O Voto.


Será por isso que amanhã será um dos domingos da minha vida. O Filipe tem razão.


Nas últimas horas o mundo parece ter começado a girar ao contrário. Aconteceram muitas coisas estranhas.


Parece que é de propósito.


Quando faço bicicleta no ginásio surpreendo quem me observa quando começo a pedalar para trás.


Uma vez expliquei: se os chineses que vivem no meu condomínio andam à retaguarda, movimentam-se ao contrário, para contrariar os movimentos habituais e rotineiros do corpo, porque é que eu não podia rodar cinco minutos ao contrário...


Acho que entenderam.


Isto é: estou habituado a que as coisas girem ao contrário.


Mas não assim.


Tirei o dia para mim. Para descansar. Para me afastar das coisas que me incomodam. Para pensar. Pensar no que tem sido. Pensar no que quero. Pensar no amanhã, literalmente, mas não só.


Sim, será um dia especial.


Todos os domingos foram especiais. Este domingo será o mais especial de todos por motivos que não consigo traduzir em palavras. Logo eu que me apresento como Técnico Instalador de Palavras.


Depois da minha primeira meia maratona prometo ir fazer o terceiro curso de escrita.


Agora vou entrar em processo de isolamento, hibernação.


Preparar tudo ao detalhe. Inclusivamente acertar três despertadores.


Planear mentalmente o trajecto até à linha de partida - pelo meio vou antever o som do tiro de partida - os ténis, os calções, a camisola, o gel, as gotas, o iPhone, os phones, o Ipod mini - que o meu tempo será registado pela minha app. É ela que me acompanha desde sempre e por isso quero poupar a bateria ao telemóvel. Vou desligar tudo. Ouço música ni iPod mini que quase não se vê e que se prende com uma mola nos calçoes.


Não quero ter que arranjar nada de manhã, já me basta ter que ir meter gásoleo.


A chave do carro. O pequeno almoço. A que horas acordar. Água. Onde deixar o carro. Tempo de viagem.


A música. Muita música.


Os combustíveis trazem aditivos e tornam-se mais eficazes.


Eu ouço música e adapto a corrida ao que ouço. Sou eu quem decide. Ela também é combustível.


Se eu fosse combustível era Jet Fuel. Nem pestanejava.


É que ontem treinei junto ao aeroporto e hoje estou com os motores em aquecimento. Influências.


Amanhã é dia de voar, num tapete mágico e inesquecível.


Voar sem sair da terra que está a girar ao contrário.


Com esperança que no fim tudo volte ao normal. Com a certeza que no fim nada será como antes.

04.10.14

A MINHA PRIMEIRA MEIA MARATONA OU CORRER ATRÁS DE DEUS


The Cat Runner


 


 


É engraçado como há coisas que batem certo.


Ouvimos ou lemos, retemos, mais tarde percebemos que tudo se encaixa. O Homem é um animal de hábitos.


Já me tinham falado sobre a ansiedade nos dias imediatamente antes da prova.


Ansiedade que impede um sono tranquilo, que faz esvoaçar borboletas dentro da barriga, que faz ter comportamentos pouco sintonizados com a nossa idade, que nos impele para ideias loucas e sonhos estranhos.


Será isso mau?


Será mau sentir coisas novas, coisas boas, esperanças, inseguranças, estar entre a multidão?


Até pode ser mau, mas sabe bem. E, aqui entramos num outro patamar. O que tem que ser será.


Já contei que as corridas me fazem bem, são como um bálsamo, único, que vicia, mas que faz bem. Estou a gastar caracteres à parva é o que é.


Hoje decidi - ontem decidi - correr.


Rolar cinco quilómetros para tentar expulsar a gripe e obrigar os músculos a mexerem-se, os poros a abrirem-se e aquele cerrar de olhos de prazer viciante, ressaca - também já falei sobre isto.


Controlado. Apenas rolar.


Consegui o meu melhor tempo de sempre.


Seis quilómetros, subidas, descidas, a uma média de cinco minutos e cinco segundos por quilómetro.


A cada passada pensava: é só rolar e perceber a reacção do corpo e da cabeça. Abranda. Logo à frente o ritmo aumentava involuntariamente. Deixei-me ir. Não havia remédio.


Corri junto ao aeroporto de Lisboa, enquanto a minha mãe esperava o meu pai. Equipei-me no parque de estacionamento. Saí até Figo Maduro e voltei, ainda dei um voltinha numa rua paralela.


Sei porque fui. Fui esperar o meu pai porque morria de saudades. Fui correr por estar revoltado.


Fui, porque estou farto de dizer adeus.


Juntar a isto a frustração por estar com gripe e estar a lutar como posso para sair daqui, foi a mola que me empurrou para a estrada. A combinação perfeita, que não pelos melhores motivos.


Já me despedi de amigos vezes demais nestes últimos meses.


Parece um estranho e surreal braço de ferro. Corro para não sangrar por dentro.


É a perda de mais um amigo - volta sempre a analogia entre a corrida e a vida. E a morte. - que me leva a modificar e a tornar o meu plano de preparação completamente anárquico a partir de agora.


Há dias, a gripe obrigou-me a esquecer o que tinha programado e a focar-me no facto de ter que correr com ela.


Estou a conseguir, mas, percebi que tudo muda num instante, uma vez mais. A vida já me tinha explicado isso. É sempre bom relembrar a relação de forças.


Neste contexto, mencionei numa das minhas crónicas, uma passagem de um texto do Filipe Mendonça - se não leu, aconselho - na qual ele dizia que domingo é um dia especial. Por um motivo especial.


Eu acrescentei no meu texto que era especial para ele e importante para todos os que forem correr.


Lembro-me que essa minha crónica tinha por base a radical alteração dos planos de preparação em função do meu estado mais débil. Tipo sobreviver para lá chegar.


De um momento para o outro a meia maratona de domingo não é só importante, ela passou a ser especial também para mim.


A celebração da vida. A homenagem, à minha maneira.


Volto a alterar os planos.


Uma esquina, uma surpresa, um instante. Tudo muda.


Não há mais planos.


Não há mais cuidados.


Não há mais nada a não ser ansiedade, vontade, querer muito. Correr. Agora, só há correr. Ponto.


Amanhã estrada!


Amanhã vou despedir-me de mais um amigo. Preciso de estrada. Sem planos.


Este meu amigo tinha sessenta e um anos.


Era amigo da família. Gente conhecida e respeitada na terra.


Conheço-o desde que me lembro. Sou amigo de um dos filhos. Uma daquelas pessoas que sabemos que gosta de nós.


Já há muitos anos, quando perdeu o irmão, a terra sentiu e amparou-o. Nas cidades pequenas ainda acontece assim.


Contou-me hoje a minha mãe ao jantar:


" Lembras-te quando nós tínhamos aquele cafézinho na Barroca...


No primeiro dia em que tu apresentaste o teu primeiro programa na TVI, o senhor Vitor sentou-se no meio da sala, olhou para mim e disse: " quem o viu tão pequenino e agora tão homem feito.


E chorou muito".


Ainda não consegui desatar o nó na garganta.


A minha mãe só me contou isto esta noite, ao jantar.


Tínhamos acabado de ir buscar o meu pai ao aeroporto.


Há longo tempo que é assim, por causa dos cortes, do adiamento da reforma, da velhice portuguesa - experiência e sabedoria na Holanda - dos impostos, do desemprego. Da crise e das elites.


Os meus pais são novos. Ele tem sessenta e cinco. Ela sessenta e dois. O senhor Vitor A. tinha sessenta e um e era nosso amigo e nós dele.


Tentam à força afastar-nos, pois devo dizer que a vida encarregou-se disso durante toda a vida, não precisavam de se preocupar. Basta a morte para separar. Se não for ela nenhum homem jamais irá seprar o que o amor uniu.


A cada partida à sempre uma chegada, seja onde for,  há sempre um momento único; o regresso, o reencontro, o abraço. Tudo misturado.


Partir e chegar. Como nas corridas. Como na vida. Como na morte.


Há muito de coragem em viver. É como correr atrás de Deus. Até que o encontramos, na morte. Eu não acredito em deus. A minha religião é outra.


Domingo, vai por ti, Vitor A.


Meu velho amigo.