A BINHA BRIMEIRA BEIA BARATONA OU ESTOU TODO ENTUPIDO
Hoje tive que ter uma conversa comigo.
Sentei-me, não me recordo onde, puxei-me uma cadeira e comecei:
- Basicamente sinto-me dentro de uma caixa quadrada.
- Quadrada?
- Sim. Eu, dentro de uma caixa quadrada, transparente.
- Uma bolha...
- Quadrada.
- Mas vives ou não?
- Exactamente!
Em cada ligação de cada lado da caixa quadrada, onde os pontos se colam e ela ganha forma, estão as muitas prioridades. Alinhadas, fazendo parecer os pássaros quando descansam nos cabos de alta tensão. Serenamente.
- Como assim?
- Eu estou lá dentro. Imagina que a caixa é um desenho. Em cada linha estão as sugestões que os dias exigem. E tento responder a todas.
- Ok, e agora directo ao assunto...
- Até ontem estava a levar isto da corrida a sério.
- Já não estás?
- Estou...
- Mas...
- Mas não tanto.
- Explica-te...
- Percebi que por muito que te prepares tens que estar preparado para tudo.
- E entras em auto-sofrimento...
- Não, de todo.
A corrida é como as quatro Estações do ano. Tem fases. Primeiro fiquei fulo, pensava ter deitado tudo por terra, sem ter o controlo da situação.
- E...
- E, entretanto pensas que isto não é para ser levado a sério. Ao ponto de questionares tudo.
- Mas tem que ser sério...
- Há muitas formas de ser sério...
- É um facto.
- Neste caso treinar muito é sinónimo de ser sério. Levar à risca toda a informação que absorves é ser sério. Planificar e executar é ser sério. Depois, vem a gripe. Isso não é ser sério.
- Outra vez essa conversa...
- A caixa quadrada à qual instistes chamar bolha é aquilo que ainda ontem negava; obsessão.
Agora, admito, estou em modo raiva. Agora, vou até ao fim.
- E já não estás a levar isso a sério?
- Estou, mas não como até ontem.
Vou correr, faltam dois dias.
Vou correr com ou sem gripe.
É uma questão de princípio.
- Queres que te diga o quê?
- Nada. A ideia, na verdade, não é receber o que quer que seja. Passa apenas por colocar para ler aquilo que passa, de forma transversal, por mim, nos dias que correm.
- Sabes o que aprendi com isto?
- Não...
- Correr tem só a ver com cada um.
- Estou farto de dizer-te isso...
- Sim, mas...
- Mas, olha, ainda hoje perguntei à Rita porque corria todos os dias na semana antes da meia maratona. Que é sempre assim, que é assim que se sente bem. Não altera as rotinas, a não ser na quilometragem percorrida. Nem sequer altera o pequeno almoço no dia da corrida.
Outros não correm, alimentam-se a rigor, descansam...
- Tu também corres com o estômago vazio...
- Mas como sempre qualquer coisa doce. E um café.
- E a cena da gripe...
- Está controlado. Continuo entupido, como bem percebes, mas ando a carregar no chá de gengibre - ácido para caraças - no Brufen, nas vitaminas, no Griponal, estou a bater-me mais ou menos bem.
- Continuas a sentir-te preparado?
- Mais do que nunca.
- Mas não tens o corpo adormecido, a cabeça com uma bolha de ar lá dentro, vontade de dormir?
- Tenho, - lá vem a bolha outra vez - mas, a espaços, sinto melhorias, depois menos.
- E achas que domingo estás bem?
- Perguntaste se estava preparado, não perguntaste se me vou sentir bem. Não tenho essa resposta.
- Então como é que estás preparado...
- Estou. Tenho uma certeza. Estou preparado para correr a meia maratona. Tudo o resto são os desafios permanentes durante vinte e um quilómetros. Respirar bem ou mal - talvez isto também seja reflexo de ter deixado o tabaco - sentir o corpo mais leve ou mais pesado. Ter dores ou não ter - estava tão bem nesse aspecto -, isso são as barreiras que tenho que derrubar...
- Mais as subidas...
- Não tem muitas. Mas tem. Mais o calor. Muita gente. Muito longe. Mas para isso estou preparado.
- E se estiveres ainda doente?
- Vou contar-te um segredo.
- Zécas...
- Vou. Vou alterar o plano. Por isso disse que agora isto já não é tão sério como era até ontem.
- Não estou a apanhar...
- Estás estás.
- Amanhã vou rolar cinco quilómetros.
- Só com um dia para descansar?
- Tal e qual. Rolar. Não quero os músculos adormecidos. Quero o corpo a mexer. Quero senti-la a sair enquanto corro.
- A gripe?
- A gripe.
- Mas se estás ok para correr amanhã...
- Cinco quilómetros.
- Ainda assim; é porque estás bem.
- Não estou, mas lembras-te de quantas vezes durante este ano ultrapassei dificuldades a correr, enquanto corria...
- Isso é verdade, mas não há milagres.
- Alguma vez fiquei doente por causa do sol, da chuva, do vento, da poluição, dos pólens no ar, por causa dos mosquitos e das moscas?
- Zero.
- Então!
É uma gripe que me vai parar agora?!
Vou expulsá-la a correr, amanhã.
- Mas assim não descansas a carne, pá.
- Mas descanso a alma e mato-a, a gripe.
- E se não resultar?
- Pelo menos corri.
- Tenho a certeza quase absoluta que vai ser assim, mas vão chamar-te doido.
- Deixa. Contou-me um amigo, campeão à séria, profissional, que ele próprio corre e treina nas vésperas de corridas.
Afinal de contas não é isso que conta, correr?
- Assim o corpo deixe...
- Mesmo que não. Desta vez assim será.
- E quando é que sais de dentro da caixa?
- Mal acabe. Mal acabe acabou.
- Depois se verá...
- Parece futebol; tudo pode acontecer. Não está nas tuas mãos tudo, mas está tanto que é só teu. Saca lá da coragem, do sofrimento, das dificuldades, se for preciso. Haverá pouco espaço para tirar prazer, mas há o primeiro objectivo: terminar.
Se domingo estiver bem, então volta tudo à primeira forma. E, nada disto fará sentido.
- Seja como for chegarás ao fim?
- Se não me magoar.
- Então trata-te e faz o que te der na gana.
- Por isso amanhã vou correr. Se resultar registo a patente: "cure gripes com a corrida Lda."
- Se não resultar?
- Compro um plano B num crowdsourcing alojado no Sri Lanka...
- Também correm, lá?
- Não sei, mas também apanham gripes.
- É dos ares condicionados.
- É, lá faz muito calor.
- Bom, desejo-te as melhoras.
- Agradeço. Tu alimenta-te, estás magrinho. Ah, e a caixa afinal não é quadrada, é mesmo uma bolha.
Peço desculpa por esta alucinação que acaba de ler. Não é da minha responsabilidade.
É da febre!
E da corrida.