HÁ DIAS ASSIM...
Ontem foi um dos dias mais fantásticos deste ano fustigado por provações, que dispensava, num abrir e fechar de olhos.
É sobre ele que vou escrever. Como sempre escrevo. Gosto de escrever sobre os dias. Nada os pára. Correm rápido.
O que escrevo nem é propriamente para ser lido. Admito a confissão.
Este blog é uma máquina de escrever e eu sou um técnico instalador de palavras. Só isso, aqui encontro o meu canto. A minha escrita. Só isso.
Enquanto isso não ficar claro, poderá abrir caminho a determinadas dúvidas existenciais de terceiros que, porventura, leiam o que aqui escrevo. Sei lá, há gente para tudo.
Escrevo para mim. Sou um sacana egoísta que encontra aqui o seu próprio espaço, mais um pedaço do seu próprio espaço.
Porque escrevo para mim, ainda que, porventura, terceiros me leiam, faço-o de uma maneira só minha. Por isso utilizo muitas vezes a expressão " de mim para comigo".
Não retrato, nesta máquina de escrever, fotografias tristes, avulsas e gratuitas. Escrevo os meus dias, nem todos. Conto-os a mim próprio em letra alta - que não leio os textos em voz alta. Não há aqui lamechas, apenas há verdades.
Os olhos que por estes textos passam olham para eles como bem entenderem. Tanto se me dá. Sou um sacana egoísta, em determinadas coisas.
A corrida de ontem. É para isso que aqui estou. Sempre a corrida. Isto acaba por ser terapêutico, a corrida, a escrita, as minhas histórias, que só a mim interessam, porque no fim, algo de alívio fica durante algum tempo. Até ao próximo texto. Até à próxima corrida. Até ao dia seguinte.
Ontem foi um dos dias mais fantásticos deste ano.
Quem não me conhece, facilmente pode ser levado a concluir que gosto de me exibir nas redes sociais e assim. Sou muito activo, dizem. Antes assim. Não há cá tempo para "passividades", seja no que for.
Quem me conhece, facilmente consegue entender as coisas que escrevo. Sabe que não sou nada do que disse.
O superficial versus para lá disso. É com cada um, é como cada qual.
Um acordar diferente.
Depois de todas as rotinas - as poucas a que me permito - matinais, mal acordo, do género beber logo água quente com limão, sei lá, lavar os dentes, coisas dessas, depois dessas rotinas é que, normalmente, faço a primeira corrida do dia.
Corro os jornais, as redes sociais, os emails. Corro pelo mundo em poucos minutos.
Fiz tudo isso.
Mas, nunca tinha recebido uma mensagem como a que recebi ontem pela manhã.
Uma mensagem de alguém que não conheço.
Alguém me disse um dia que conhecer uma pessoa dentro de um ecrã da televisão e conhecer essa pessoa fora dele, saber o que ela pensa, como se posiciona na vida, coisas dessas, dava para formular uma opinião sobre essa pessoa e sobre o seu trabalho muito mais consistente e verdadeira. Concordo.
Só há pouco tempo é que interiorizei aquela coisa de as pessoas te conhecerem na rua. Já acontece há anos, mas sempre passou um pouco ao lado. Agora é um pouco mais claro para mim.
Já não me surpreendem mensagens de quem não conheço. Umas respondo, outras apago, outras ficam ali, a olhar para mim com cara de parvas até que eu tome uma decisão.
Mas, esta mensagem de uma pessoa estranha mexeu muito comigo.
Não me fez sentir o maior do mundo, ao contrário do que as primeiras imagens mostram. Não me fez sentir uma estrela neste estranho firmamento. Não me fez pensar que sou diferente de outros. Nem melhor. Mas, fez-me pensar.
Se o treino programado exigia que saísse para correr, depois de ler a surpreendente mensagem obriguei-me sem reservas a correr.
Era alguém com filhos. Alguém que se levanta às cinco e meia da manhã. Alguém que nunca pensou em fazer exercício, enquanto "auto-terapia".
Esse alguém, que não conheço, a quem apenas agradeci as palavras e informei que lhe dedicava este texto, revelou-me que lia os textos que saem desta máquina de escrever.
E, que foi por causa deles que tomou uma decisão que está a mudar-lhe a vida.
Não dá para pensar em orgulho ou exibicionismo. É mesmo de pasmo que se trata.
Alguém que me diz que está a mudar a sua vida para melhor porque lê aquilo que escrevo, que tomou a decisão de acordar às cinco e meia, enquanto a cidade dorme tranquila, para ir correr, porque me leu, tamanha ousadia pensar que na verdade é mesmo assim. Essealguém que me diz isso é um exemplo para mim, ao contrário do que possa parecer. Gosto de bons exemplos na vida.
Mas, é assim mesmo. Foi ela quem o disse.
Não me levo tão a sério, a este ponto. Quem me conhece sabe que não. Mas, isto é sério.
Depois de correr, este alguém que não conheço, começa então o seu dia. As crianças, o trabalho, o normal, num dia normal. Onte não foi um dia normal.
Talvez sugestionado pelo que tinha acabado de acontecer, talvez, não sei, a minha corrida de ontem teve ali uns dois ou três momentos que quase tocaram a insanidade, mas que me deram o toque para esta crónica sobre a corrida, sobre a vida, sobre mim e sobre os outros.
Sim, porque eu tenho opinião sobre a vida dos outros. Sou como as cuscas. E?!
Sou jornalista, depois de ser isto, que sou aqui. Defeito profissional, ou de fabrico, se calhar.
Corri empurrado por aquela mensagem, com a sensação que os maratonistas devem ter quando correm distâncias mais curtas para matar saudades. Uma corrida a um ritmo confortável, dizia o programa de treino. Os oito quilómetros do costume. Não, os maratonistas devem ter essa sensação de prazer ou alívio. Eu não a tive bem assim, afinal corri praticamente a distância habitual, não foi mais curta.
Eu tenho que esperar mais um dia ou dois que é quando o programa indica uma corrida de seis quilómetros - não esquecer que sou um iniciado com 44 anos, quase quase 45.
Ainda assim, aproveitei e abusei da indicação "corrida a um ritmo contínuo e agradável".
Lembro-me de olhar o rio, à esquerda, ao passar pela ponte, de carro. Quase gritei - em voz alta - foda-se o rio está lindo (desculpem-me a asneira, a sério, há crianças a ler isto).
Estava lindo!
Calmo. Espelho, com o céu em reflexo. Reflexos meus. O meu rio é lindo.
Esta mmanhã de verão de outono estranho materializou a mensagem que tinha recebi uma hora antes. Estava tudo ali, eu, tu, todos nós, quem quiser.
É ali o meu santuário. Cada um é livre de escolher os seus. Eu tenho mais santuários, mas o rio, como estava hoje, o rio...
Por causa das coisas que ando a ler, decidi começar a correr de forma diferente, dizem que a forma correcta é apoiando primeiro a parte da frente do pé, no impacto com o chão. Braços quase colados, a um ritmo e movimentos constantes.
Parece resultar. A passada sente-se leve, mais longa, maior controlo da corrida. Foi assim até ao quarto quilómetro, sempre lado-a-lado com o meu rio. Às vezes passavam remadores, velozes e musculados.
Isto é terra de campeões do rio.
O Gineto era daqui, Batista Pereira foi o primeiro ser humano a atravessar (várias vezes) o Canal da Mancha a nado. Passo sempre pelo busto do Gineto, junto às piscinas. Lembro-me sempre do Tito, seu filho e meu professor de Química no liceu. Meu amigo, anos mais tarde. Morreu há pouco tempo - eu disse lá em cima que este ano foi um ano de provações.
No fim da pista contam quatro quilómetros bem medidos desde o Jardim em Vila Franca.
O meu primo acordou cedo. Queria tomar o pequeno almoço. Só se me levasse de carro depois. Ele não tem carro. Dei-lhe um abraço (Telmo) e segui viagem.
Estava a meio.
O treino de ontem marcava oito quilómetros - hoje já - tenho ginásio com o Nuno, grande PT que encontrei no Fitness Hub.
No fim da pista está a casa-museu Dr. Sousa Martins, com os velhotes sentados à porta. Turistas também e peregrinos.
Vejo imensos turistas a pé, na minha pista, na minha corrida, ou sentados, junto aos velhotes, nos bancos à porta da casa do médico que todos veneram - o jazigo, no cemitério de Alhandra, é palco de homenagens dos crentes, às centenas, todos os anos. Quando é caso disso também me cruzo com muitos peregrinos que vão a caminho de Fátima.
Ao longo do rio, enquanto corro e olho tudo em redor, lembro-me muito de Alves Redol.
Vejo-o sempre num mural que há no Jardim, na parede exterior do pavilhão desportivo.
À vinda para cá - adoro esta redundância - vi uma miúda, com pouco mais do que a idade da minha filha, sentada por baixo da ponte pedonal que liga a pista ao Campo de Cevadeiro, um espaço onde se realizam eventos e se pode praticar desporto.
Já tinha reparado nela quando ia para lá - não sei se é uma redundância, neste caso.
Estava sentada. Livros apoiados nas pernas cruzadas. Óculos, cabelos longos. Ouvia música. Estava mesmo a estudar. Ali, sentada, sózinha, à minha passagem. Duas vezes.
Estava a estudar, garanto. Não estava à espera do namorado para depois fumarem um cigarro e darem uns beijos mal saborosos, da idade.
Estava estudar, que nestas coisas não me engano. Quase nunca, vá.
Olhou-me nas duas vezes.
Já antes, junto à antiga (e abandonada) fábrica de produtos de amianto - a propósito, está lá tudo, a céu aberto, há anos, amianto, sim - que é o único ponto negro, aquilo contamina tudo, vi um bando de borboletas, não encontro melhor expressão, um bando de borboletas brancas que se atravessam na minha frente, provocadoras, sedutoras, voavam quase que à minha volta.
Acelerei. Não gosto de fraquejar. Quando ouço o voar das borboletas brancas corro.
No fim, ainda fui dar um beijo à minha mãe. Conto-lhe sempre como foi a minha corrida. Vejo-a quase todos os dias, falo com ela todos os dias. Faz-me bem.
À noite, em casa, a mãe diz-lhe: "acho que tens pinta para ser arquitecto".
Ele deve ter-lhe dito qualquer coisa, inteligente.
Nestas coisas não me engano. Nestas coisas dos filhos quase nunca me engano.
Ele deve ter-lhe respondido: "sim, se calhar arquitecto, para construir arranha-céus".
Sou pai.
Só corro porque sou homem. Nestas coisas não me engano.
Sou pai e sou filho.
Ontem corri pelas filhas, pelos filhos, por uma mãe que não conheço, que começou a correr porque lê o que eu escrevo, corre às cinco da manhã, enquanto toda a cidade ainda dorme, tranquila.
E cá vamos indo, correndo.
Segunda feira vou ver o conerto de Jorge Palma. Espero que ele cante "Esta Cidade" dos Xutos.
Por muita vontade que me dê para correr quando ouço o Palma a cantar esta música, vou ficar sentado, parado.
Vou apenas escutar, "Esta Cidade".
"Filhos da puta sem razão e sem sentido..."