A MINHA PRIMEIRA MEIA MARATONA OU A OBSESSÃO DAS DÚVIDAS DOS OUTROS
Quem me conhece estranha-me.
Já me perguntaram se eu estava a ficar obcecado com isto da meia maratona.
A raça humana é curiosa. Quer saber tudo.
Não, não estou obcecado, mas satisfaço as curiosidades.
A vida pode ser olhada de milhares de maneiras. Milhões. É o que somos todos, muitos milhões. Não existe um olhar igual ao outro.
O que é então essa "obsessão"...
Não consigo explicar. É-me difícil perceber tantas cabeças. Difícil encontrar lógica na pergunta.
Não há respostas para todas as perguntas.
Não é obsessão nem nenhum parente da dita cuja.
Pode ser difícil entender, acredito, mas as coisas mudam, as pessoas aumentam de tamanho e de responsabilidade, a terra gira, o verão chove a inverno e o outono, aposto, não vai fazer cair as folhas das árvores.
E, ninguém é perfeito, por muito que insista.
Tenho o diploma de protótipo comodista - não confundir.
Foi assim toda a vida.
Deixei sempre para amanhã o que podia fazer hoje, salvo raras e preciosas excepções.
Quem me conhece habituou-se assim a mim. Quem não me conhece só me conhece assim.
Mas, a terra gira, que se farta - já viu há quantos milénios?
Por vezes a terra gira ao contrário...
São essas alturas, em que a lógica da vida se desvanece, que nos obrigam a reformular o olhar. Fechar e abrir de novo.
Nessas alturas de provação aprende-se com a impossibilidade de travar o curso das coisas; retiramos lições.
Um olhar. O meu.
Não é obsessão isto de ir correr a meia maratona.
É desafio.
Desafiar as capacidades. A dor e o prazer. Desafiar-me. Desafiar o meu passado comodista - não confundir.
É superação.
Avançar quando queres desistir. Subir quando queres descer. Secar quando queres beber.
É paixão quase amor.
Fechas os olhos e sorris. Escutas a melodia. A música, os pássaros, as pessoas, a cidade, o campo, os combóios.
Mais rápido. Ofegante. Prazer. Arrepio. Água que escorre pela boca, pelo corpo, pelas pernas.
É o vento que empurra.
Sãos as asas invisíveis que ganhas.
É exibicionismo. Claro que é. Todos gostamos, de uma forma mais directa ou mais indirecta, de mostrar aquilo que fazemos com coragem, intensidade, inteligência, paixão, responsabilidade.
Correr, para quem gosta, é só mais uma metáfora da vida com muitas metáforas da vida dentro.
Todos gostamos de mostrar o lado brilhante da vida, mesmo que seja através de filtros. Não é o caso.
Até aqui há uma deliciosa relação.
Mostrar, ser visto. Não, nada de fama, aqui. Mostrar para partilhar. Ser visto para trocar experiências. Beber conselhos e ensinamentos.
Tudo isto para dizer que faltam exactamente oito dias para o dia mais importante deste ano de corridas. Deste ano de aprendizagem.
Tenho aprendido a escutar, a observar, a resistir. Tenho aprendido a descobrir.
A obsessão que nos trouxe até aqui não é apenas um sinónimo de pragmatismo:
Definir um objectivo. Traçar um plano. Executar. Conseguir.
Se é essa a obsessão das dúvidas, então estou obcecado.
Se é outra, trocado por miúdos, está dada a resposta: é um desafio que me coloco. É também uma forma de estar nova. E é aprendizagem, caminho. A vida é isso.
Dizia eu que faltam exactamente oito dias para a meia maratona.
Ontem saltei o plano de treinos e descansei.
Faltava-me a última corrida longa, chegado ao fim da terceira de quatro semanas de preparação.
O sono é decisivo. Por isso acordei cedo.
Fui ver futebol. Saí a meio.
O meu jogador preferido ficou nas cabines ao intervalo e diz que o jogo ( de treino ) acabou mais cedo porque um dos miúdos quis mostrar aos espectadores que também sabia de artes marciais.
Em boa hora.
Não me enervei, que eu enervo-me com estas coisas.
Enquanto isso, já eu me cruzava com dezenas de pessoas coloridas, amarelo-limão, cor de laranja néon, azul céu com filtro de Instagram. Gosto de me cruzar com pessoas que trajam bem, mesmo quando correm.
Trocaram-se vários sorrisos, olhares. Nada de palavras, a não ser quando eu deixei escapar um "porra" por causa do puto gordo que se atravessou à frente, com o capacete a tombar-lhe no nariz.
Nem toda a gente corre.
Esta manhã gostei de correr. Esta manhã também gostei de ver pessoas completamente vestidas, com sapatos, a caminhar e a fumar o seu cigarrinho.
Podiam era ir caminhar para o lado de lá da linha do combóio. Nada que uma mão na boca e no nariz não resolva.
Ontem descansei, hoje corri.
AS opiniões dividem-se: dezoito quilómetros a oito dias da meia maratona é arriscado.
Outros entendem que oito dias são suficientes para recuperar - imagina lá as dores que isto dá, eu também não fazia ideia.
Parece que os músculos das pernas estão a ser afastados por tenazes invisíveis, em permanência.
Tudo isto já lá vai.
Hoje consegui perceber que estou pronto. Fiz o que tinha que ser feito. Se fosse hoje tinha conseguido algo em que nunca tinha sequer pensado.
Mas, hoje era apenas a última corrida longa do plano desenhado há já três semanas.
Quase três dias sem fumar ajudaram.
Não precisei pensar na respiração, foquei-me em outros detalhes - temos que manter o cérebro ao ritmo dele e não ao ritmo das pernas.
Senti-me diferente. Melhor.
Se fosse hoje tinha a certeza que conseguia o objectivo final: correr bem, chegar ao fim em menos de duas horas e trinta.
Só que nada faria prever que todo este trabalho estivesse em risco.
Há três dias comecei a sentir desconforto no calcanhar esquerdo.
Em tempos aconteceu-me no tornozelo direito. Foi a mais longa paragem neste último ano: nove dias.
As coisas que se aprendem com a corrida;
O ácido lácteo granulou - mau alongamento - e só massagens constantes podem ajudar. Nem gelo, nem correntes eléctricas, nem pomadas. Só esperar.
Ao fim de nove dias, depois de mais um tratamento, perante a petulância, a falta de respeito e arrogância da dor, decidi entrar no carro e...trocar de roupa - ando sempre com a mochila com o equipamento.
Corri, cerrei dentes, corri, alívio, mais, mais e mais. Passou. Nunca mais voltou.
Pensava eu.
Agora, parece ter-se mudado para o lado esquerdo. O lado do coração, ainda que muito mais abaixo. O coração está sempre num plano superior a qualquer dor.
Hoje, corri à hora da meia maratona, por volta das dez da manhã. Corri junto ao rio. Calor e vento. Muita gente. Recriei o cenário. Antevi-o.
Coloquei em prática o plano mental para a corrida.
Os primeiros cinco quilómetros a rolar. Os segundos passada larga até aguentar; Fartlek se fosse preciso e foi.
depois mais cinco.
Ao décimo quilómetro aquela imagem do Adamastor.
Entrada na zona crítica. Dos dez aos quinze faz-se.
Dos quinze para a frente também se faz, mas sabe-se lá como.
O Adamastor trouxe receio por antecipação.
Correr dezoito quilómetro é fazer a meia maratona, praticamente.
Ficam a faltar três. Estou pronto para o Grande Dia.
Com dor. Como ela me adora.
Soubesse ela que o meu retrato do tempo de comodista - não confundir - está gasto pelo tempo. Pobre, que não conhece quem ataca. Erro.
Estou preparado, a oito dias do Dia.
Estes oito dias vão ser passados como planeado. Nada será alterado.
Manter a condição apenas.
E tu, dor.
Gostas de fazer surpresas. Muito bem, eu gosto de surpresas.
Estes oito dias vão servir para conversar sobre umas coisas que tenho para te dizer.
Domingo veremos!
Se não me largares vamos juntos.
Voltando à obsessão...
Quando me voltarem a perguntar vou responder que sim; é uma obsessão.
Com prazo de validade.