04.09.14
SEI O QUE FIZESTE O NO VERÃO PASSADO
The Cat Runner
Passava pouco da meia-noite.
O ano tinha virado.
Nunca antes tinha virado da forma como virou naquela passagem de ano, a última.
A corrente quebrou-se, como que por feitiço.
A sala estava cheia de gente cheia de afecto, de amizade, de ternura, de amor, de carinho, de paz. Grandes e pequenos.
Estava a ser uma noite estranha e calma. As noites de passagem de ano não costumam ser assim. Um jantar grande, velas, conversas, pouco samba, vozes serenas.
Uma noite desigual, mas nem tudo estava perdido: a televisão - aqui cumpriu-se a tradição - encarregou-se de dar a contagem decrescente, já era ano novo no outro lado de tudo. Do mundo, do Oceano, do Céu. Não importa. É sempre assim.
10,9,8,7,6,5,4,3,2,1...Feliz Ano Novo!!
É sempre assim.
Abriram-se garrafas de champanhe, deram-se abraços e trocaram-se olhares resumidos a um ano e a outro que chega. Olhares que dizem tudo num abraço.
A sala estava cheia de gente cheia de uma paz irrepetível.
Da varanda vê-se o fogo que ilumina o céu escuro.
O céu não é escuro. O fogo só o ilumina.
Artifício. O belo.
A varanda cheia de gente cheia de brilho no olhar a olhar o céu mais claro, às cores. Muitas. Azuis, encarnados, laranjas, amarelos, estrelas e estrelas que aparecem do nada e sobem ao céu e com ele se confundem.
O Ano Novo chegou assim.
Parecia ser um ano redondo.
Mas, logo aos primeiros minutos do novo ano alguém se calou. E todos se olharam. Calaram.
- É a primeira vez em toda a minha vida que isto me acontece!
Não comi as doze passas e não formulei os doze desejos.
Largaram-se a rir. Uma sala cheia de gente cheia de vontade de rir.
- Como é que te foste esquecer de comer as passas...
- Confesso que não sei. Vocês riem-se, mas também não comeram as passas.
Se o momento fosse triste a indignação teria invadido os espíritos de cada um, mas o momento era de celebração.
Todos voltaram a rir.
Só que o momento era sério.
Quebrou-se a corrente. Matou-se a tradição e ficámos a mercê da nossa sorte. Gente cheia de desejos esquecidos de serem celebrados. Garantidos com o carimbo divino.
Criámos a desordem e celebrámos o feito.
Aconteceu qualquer coisa de premonitório sem que tivessem dado conta. Por isso riam.
Ainda tentou inverter a situação mas à terceira passa parou.
Agoniava-se. Estava fora do tempo.
Tomou consciência que estava a ficar ainda mais à mercê da sua sorte.
As doze badaladas há muito que se tinham calado.
O fogo de artifício resumia-se agora às canas espalhadas pelos campos e pelas ruas.
O céu teimava em parecer escuro como a noite.
A corrente quebrou.
Tanto estava para acontecer. Desta vez sem qualquer tipo de controlo, como se o destino não estivesse nas mãos, ainda que escrito por outro qualquer.
Há sempre uma celebração em cada encontro, no meio do caos, de cada caos. Cada um de nós vive o seu próprio caos e o dos outros.
O ano que era redondo ainda só agora vai a caminho do outono.
Há já folhas que caíram lá trás.
Algumas já despiram as árvores e a chuva já molhou os olhos da planície.
Houve perda, paixão, amor até, raiva e revolta, injustiça. Desilusão?
Tudo misturado!
Cada um sentiu brilho no olhar e borboletas na barriga, orgulho e alegria, momentos felizes e abraços prolongados.
Tudo misturado!
Depois chegaram as férias.
Elas partiram o ano ao meio. O verão e o céus encarnado-dia.
O vento que vem de África e que sufoca até que passa.
Até ao verão que vem tanto irá acontecer.
Nesse verão que há-de vir, feito de mudança, saberás o que fizeste no verão passado. Agora é que não.
Não tens como saber. É muito cedo.
Cedo para partir. É sempre cedo para partir, mesmo que as estrelas te conduzam a um lugar mágico. É sempre cedo para partir.
Agora não sabes, mas no verão que virá sabes o que fizeste no verão passado.
Sabes que as passas são para se comer. Pelo menos isso tu sabes.
Só assim controlarás os teus próprios desejos e paixões, desafios e embates, provas e experiências.
Ou então nada disto faz sentido, nem este verão.
Fará sentido o outono chegar antes do tempo?
Não faz, mas as folhas caíram lá atrás.
Fará sentido o verão ser assim?
Não faz, mas os olhos da planície molharam-se de chuva salgada.
Fará sentido seguir esconder?
Não faz, mas a noite gosta de brincar às escondidas.
Fará sentido não acreditar?
Não faz, mas o céu tem várias cores.
Faz todo o sentido.
O verão é que não, nem o outono. Assim não!
Não comeu as doze passas e virou o mundo pelo avesso.
Mas não fez por mal. Ele é mesmo assim.
Faz sentido continuar a viagem sem pontos de interrogação, sem pontuação. A vida não se coaduna com gramáticas e semânticas. Só por si não se coaduna, precisa de se libertar das gralhas e das letras grandes, das vírgulas.
A vida já não se coaduna com vírgulas, não senhor.
Pelo lado sul ou pelo lado norte.
No verão que vem - com tanta coisa a acontecer até ele chegar - sei o que fizeste no verão passado, se a viagem seguiu por sul ou por norte.
Não há viagens em dois sentidos ao mesmo tempo. Por muito que a viagem seja longa. Por muito que os dois sentidos sejam um só.
Há muito de coragem inocente neste acto de não comer doze passas à passagem das doze badaladas.
Muito mais coragem depois.
É nessa altura que tentas ordenar as respostas e tal como aconteceu com as passas voltas a esquecer-te que não há ordem no caos, embora pareça.
Há coragem e pouco mais.
A viagem não fácil, mas nunca ninguém disse que era suposto ser.
A ver se não me esqueço de comer as doze passas daqui a meia dúzia de meses. E o verão ainda não terminou. O outono é que insiste em chegar fora de tempo. O verão está em tons cinza.
Havemos de nos encontrar. E celebrar.
Basta um abraço e um brinde, acompanhado das respectivas passas.
Logo eu que detesto passas. E champanhe!
Não é hora de celebrar. É melhor ficar para o verão que vem!
É que está muita coisa a acontecer!