28.08.14
SOBRE A INQUIETAÇÃO
The Cat Runner
Vem isto a propósito das férias.
Eu sei que parece estranho, mas nunca fui do tipo "vem aí as férias" ou "acabaram as férias". É estranho. Eu disse que era estranho ou que pode parecer.
As pessoas são assim. São todas diferentes. Não existem duas iguais. Garanto. Vi num programa na TV Cabo. Num documentário sobre a espécie humana. Eles explicam aquilo muito bem. Gosto muito de ver os programas deles.
Por exemplo, há pessoas que não são dadas a reuniões sociais, aquela cena das festas, das passadeiras encarnadas por personagens reais.
As pessoas são diferentes, eles explicaram. Pode comprovar-se, basta ligar a "Box".
Há, no entanto, pessoas que gostam de receber e outras que gostam de ser bem recebidas - diferente de aparecer -.
Coisas banais ou coisas apenas sonhadas. Mas eu vi!
Ainda ontem ao início da noite, - vem isto a propósito das férias, obviamente estou de férias - depois de um telefonema e imediatamente a seguir a começar o meu treino diário - corro corro e corro, correr é muito bom. Gosto tanto como dos documentários na TV Cabo. Gosto muito mais ainda.
Ia a dizer, reparei num Mercedez preto que estacionava em cima do passeio.
Aqui onde estou estaciona-se, ordeiramente, em cima dos passeios, sem que os passeios deixem de existir enquanto tal.
Aqui onde estou há uma espécie de Ordem implícita.
Há muito verde. Muitas árvores. Pouca gente. Parece haver um conhecimento colectivo, sem que na verdade ele exista.
Para quem segue a série Weed, - lá está, a TV Cabo - com carimbo; no genérico aparece o carimbo: Jenji Kohana, aqui onde estou, onde escrevo, faz lembrar Majestic, sem MILF, pelo que me tem sido dado a observar.
O Mercedez preto era novo. Tinha matrícula espanhola.
Aqui onde estou, onde escrevo há muitos espanhóis.
Falam muito alto e ao mesmo tempo. Falam uma "Babilónia" de sons misturados e, pasme-se, até se entendem.
De dentro do Mercedez preto sai um casal que me fez pensar: "uau".
Na casa dos sessenta, menos talvez.
Reparei, enquanto descia e eles subiam a rua que vestiam bonito.
Eu corria, logo é-me difícil detalhar todos os pormenores. Apenas a música que ouço faz o favor de ajudar a memória, que nunca fui de memorizar muitas coisas. Se bem que nos últimos tempos...
Bem sei que são eles que fazem toda a diferença, os detalhes.
Foi muito rápido. Mais rápido que a minha média de minutos por quilómetro.
Passei por ele e por ela. Cruzámo-nos, efectivamente.
Alterei a postura. Estiquei os ombros. Alinhei os braços. Silenciei a respiração. Tornei as passadas leves. Pus-me a rigor, como exigia a situação. Encarno a minha própria passadeira, cheia de brilho.
Apesar da música que ecoava nos meus ouvidos deixei um "boa noite" à minha passagem.
Retribuíram. Foi um "boa noite" em tom baixo, perceptível, firme e simpático.
Estas pessoas que vestem bonito gostam de perceber à primeira.
Não me espantou a retribuição do "boa-noite".
Liguei os meus espelhos retro (visores) mágicos e consegui vê-los entrar na mansão - acho que lhe posso chamar assim - que parecia não ter fim.
Sei que corro lento e longo, mas por muito lento que estivesse a correr a mansão era muito mais longa que a minha corrida.
Há muitas mansões e moradias e apartamentos aqui onde estou.
Onde escrevo não. Onde escrevo há um jardim e a noite e a música.
Há um luxo e bom gosto, aqui onde estou.
É da quietação que gosto. Um dos antónimos da inquietação.
Vem isto a propósito das férias.
Férias são luxo - não é por isso que nunca liguei às férias - nos tempos que correm.
Há gente que não tem férias porque a crise - a crise não é crise nenhuma, a crise é caso de polícia, à séria e só foi para aqui chamada porque teve mesmo que ser - lhes matou os sonhos, enquanto os vai mastigando, lenta e violentamente. Os detalhes, é verdade...
Os/nos. Todos. Quase todos. Muitos de nós todos.
Há gente até que nunca teve férias.
Aquele período ou períodos do ano em que colocamos o avião em velocidade de cruzeiro e abrimos as janelas do sossego ( ou do doce desassossego ) para entrar ar que revigora até ao primeiro dia de regresso à rotina. Passa rápido. Os documentários da TV Cabo também explicam isso.
Por isso, aqueles que passam férias são gente que pode ter esse luxo. Mesmo que seja luxo estar junto, apenas. Encontros demorados.
Tem vezes que estar junto é luxo. É risco. É cume. É queda. É abismo. É bom. É luxo. Às vezes!
Nem sempre são férias.
Nunca esperei meio ano para quinze dias de férias, por nada em especial. Na verdade faço férias repartidas. Todos os meses. Todas as semanas. Quando calha. Quando quero!
Sair de fora para dentro.
Enquanto corria ao longo do muro baixo da mansão, uma das tantas que existem aqui no lugar onde estou lembrei-me dos Espírito Santo. Que raio. Tudo isto em segundos, que foi quanto demorou aquele cruzar de gente.
Consegui ver um jardim com recantos, cadeiras, mesas, luz acolhedora. As janelas mostravam salas, quartos. Carros de alta cilindrada. Quase todos pretos.
Aqui onde estou a inquietação é só minha.
A mansão não pertence aos Espírito Santo coisa nenhuma, mas aqui onde estou dá ares da Comporta. Se calhar foi por isso.
As redes sociais garantem o ruído mínimo. Bastam. Basta!
Vem isto a propósito da inquietação. Vem isto a propósito das férias. Vem isto só a propósito de nós.
A preocupação com o que, normalmente, se encontra acima do entendimento.
Há consumição, apoquentação, agitação, apreensão, desassossego, ralação. Há sinónimos, tantos, certeiros, condição fundamental para se ser sinónimo.
Queima, aí fora.
Queimas-me, sol do Sul.
Não chego a ser um tipo estranho. Talvez seja como este texto; quietação e inquietação. Talvez seja como cada qual.
Mas sei que tenho a redenção garantida.
Limitei-me a dar férias à minha inquietação.
Ela gosta de luxos, fazer o quê?!
Eu gosto dela, fazer o quê?!
Gente que é um substantivo. Feminino. Inquietação!
Está calor, aqui no jardim da casa. Corre uma brisa fresca. Entras na dúvida, se entras. Se ficas. Sabes que não vais. Pelo menos por agora.
Apenas o ruído do vento entre as árvores incomoda.
Vem tudo isto a propósito de nada e a propósito de tudo!
Se calhar, só a propósito da inquietação que as férias provocam, sei lá!