Estavam todos sentados. Os cinco. Sentidos. Os cinco sentidos, sentados.
Os cinco, em redor da mesa quadrada. Lá se encaixaram. Era fácil encaixarem quando queriam.
A conversa corria tranquila, às vezes um tudo nada animada a mais. Cinco sentidos são cinco sentidos, está-lhes nas veias.
Cinco sentidos, sentados, à conversa, um tema, sempre mais directo, mais indirecto, sempre presente, a ausência.
E cada um defende-se, como pode, numa batalha de argumentos só válida a título excepcional, individual. Mas, interessante e isso é o que conta.
A ausência...do sexto sentido.
O sector feminino da mesa estava em minoria.
A visão e a audição representavam o quase-divino.
O paladar, o olfacto e o tacto eram o músculo da conversa. Três para dois.
A ausência da intuição.
É, no fundo, a intuição que "materializa" - tipo holograma - a ideia que temos sobre o sexto sentido.
A conversa entre os cinco sentidos, sentados à mesma mesa foi, feitas as contas, de cortar à faca. Disseram coisas agradáveis, mesmo as mais desagradáveis foram conversadas como se de coisas agradáveis se tratasse.
Cada um entrou no campo de batalha disposto a mostrar tudo aquilo que tinha como mais-valia.
Talvez houvesse ali um bocadinho de brio. Isso!
A visão decide começar a discussão, em tom sereno:
- A questão é clara. O sexto sentido pode ser um mito, pode ser realidade até.
Sabemos que ele leva vantagem em relação a nós.
A visão decide intervir...
- Meus caros, é um facto que nenhum de nós consegue agir em função desse eco interior.
A visão tentava provocar um equilíbrio de forças.
- Não há aqui nada de sobrenatural. Nós somos cinco. Somos genuínos, originais, legítimos. Por isso, eliminar essa sexta "maneira" de sentir alguma coisa, de antever, de entender, de...
O paladar avança...
- Tudo isso é muito engraçado, mas não passa de conversa de gaja.
A audição e a visão - ao mesmo tempo - indignam-se. Não levantam o tom da voz.
- É uma questão que não se coloca.
Disseram ambas.
O paladar não se ficou...
- Muito bem. As senhoras querem que o sexo sentido, porque o mito diz que é exclusivo das mulheres, seja convidado para o seio do nosso grupo. É isso que percebi?
O olfacto, até então calado olha à volta. Faz-se silêncio na mesa.
- Vocês estão divididos, correcto? Tão divididos que nem me conseguem responder. Vá, o vosso melhor, por favor...
A visão, a audição e o olfacto anuem que sim, com a cabeça. O tacto, por quem nem se tem dado, também anui, com o olhar.
- Muito bem. A questão é saber se o sexto sentido entra e equilibra as forças ou se continua fora deste círculo fechado!
Entendo que não há excepções. Não deve haver. Entendo que - nem se trata de limites - a nossa função é estabelecer uma ordem nas coisas. Acho, por isso, que a intuição só deve ter a sua intervenção se for de todo impossível evitar. Reconheço que há momentos impossíveis.
Dizem que as mulheres captam um estado emocional com mais facilidade que os homens.
Isso pode dar vantagem. Não forçosamente.
O olfacto entra, finalmente, na discussão...
- Eu penso que o paladar tem razão ( o olfacto e o paladar, o gosto, o sabor e os cheiros e os aromas sempre foram cúmplices). Devemos ser pragmáticos. Devemos, em rigor, saber o que queremos, quando e como.
Há momentos em que, se nós os cinco agirmos em conjunto, cada qual no seu tempo exacto, não há sexto sentido que lhes valha.
Juntos somos mais fortes que qualquer intuição, por muito feminina que seja...
A visão...
- Vocês são tão pragmáticos, admito. Falta-vos aquele bocadinho assim...
Pergunta o paladar:
- Bocadinho de quê?
- Não é de quê; é de perceberem que, se o sexto sentido for um de nós, então aí sim, seremos aquilo que pretendemos ser, num todo.
- Eu sou o paladar. É só isso que pretendo ser. Dou prazer. Transformo matéria em desejo. Não preciso de mais.
- Eu sou o tacto. Eu sinto. O toque. Eu materializo. Eu guardo a textura da pele e dos cabelos. Não preciso de mais.
- Se querem ir por aí; eu sou o olfacto. Eu consigo inventar perfume e levá-lo de um pescoço até uns lábios e de lá não mais sair. Eu crio interação. Eu confundo. Não preciso de mais.
O lado feminino estava estupefacto com tamanha posição dominante, arrogante, desbragada, com que os outros três sentidos estavam a tentar alterar o rumo de todos os acontecimentos.
- Meus senhores, eu sou a audição. Eu permito que escuteis o som dos pássaros, o correr dos rios para o mar. Eu acalmo. Eu sei que não sou insubstituível. Eu sou eu e, ao contrário de vossas excelências, tão másculas, eu preciso de mais, de muito. De muito mais.
Não quero dar-vos apenas o escutar de tudo. Quero misturar-me com o aquilo a que cheiras, sabes ou reconheces, ou conheces.
- Porquê?
Isso não faz qualquer sentido,
diz o olfacto.
- Faz todo o sentido. Nós somos os sentidos. Nós sabemos interpretar os sinais e os recados.
A visão já se estava a passar.
- Calma, calma...
- Calma como?
A conversa vai daqui até ao sistema solar em...
É quando um alarme de um dos smartphones começa a tocar.
Diz o paladar:
- Lamento, é o chá das cinco.
Diz a visão:
- Lamentas porquê?
São cinco. Somos cinco. Sentidos. Sentados. Faz sentido.
- Lamento, falta aqui o sexto sentido. Devia aqui estar. Pronto, admito.
- O homem está doido...
A visão e a audição não acreditavam no que acabavam de ouvir. O paladar, sempre muito senhor de si continuou:
- Sabem qual é o vosso problema?
Pensam muito, para sentidos.
- Sentados! ( o tacto tenta fazer uma piada para que a conversa acabe bem).
A porta da sala abre-se.
- Boa noite a todos. Obrigado pelo convite que não me fizeram. É um prazer tomar chá convosco. São cinco. Não pensem mais nisso, vocês pensam muito, para sentidos, afinal, se não forem os cinco, ainda que sentados, que sentido faço eu?!
A água quente, por favor. E o açúcar, já agora...