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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

30.08.14

O IMPÉRIO DOS SENTIDOS OU OS CINCO SENTADOS MAIS UM


The Cat Runner
Estavam todos sentados. Os cinco. Sentidos. Os cinco sentidos, sentados.
Os cinco, em redor da mesa quadrada. Lá se encaixaram. Era fácil encaixarem quando queriam.
A conversa corria tranquila, às vezes um tudo nada animada a mais. Cinco sentidos são cinco sentidos, está-lhes nas veias.
Cinco sentidos, sentados, à conversa, um tema, sempre mais directo, mais indirecto, sempre presente, a ausência.
E cada um defende-se, como pode, numa batalha de argumentos só válida a título excepcional, individual. Mas, interessante e isso é o que conta.
A ausência...do sexto sentido.
O sector feminino da mesa estava em minoria.
A visão e a audição representavam o quase-divino.
O paladar, o olfacto e o tacto eram o músculo da conversa. Três para dois.
A ausência da intuição.
É, no fundo, a intuição que "materializa" - tipo holograma - a ideia que temos sobre o sexto sentido.
A conversa entre os cinco sentidos, sentados à mesma mesa foi, feitas as contas, de cortar à faca. Disseram coisas agradáveis, mesmo as mais desagradáveis foram conversadas como se de coisas agradáveis se tratasse.
Cada um entrou no campo de batalha disposto a mostrar tudo aquilo que tinha como mais-valia.
Talvez houvesse ali um bocadinho de brio. Isso!
A visão decide começar a discussão, em tom sereno:
- A questão é clara. O sexto sentido pode ser um mito, pode ser realidade até.
Sabemos que ele leva vantagem em relação a nós.
A visão decide intervir...
- Meus caros, é um facto que nenhum de nós consegue agir em função desse eco interior.
A visão tentava provocar um equilíbrio de forças.
- Não há aqui nada de sobrenatural. Nós somos cinco. Somos genuínos, originais, legítimos. Por isso, eliminar essa sexta "maneira" de sentir alguma coisa, de antever, de entender, de...
O paladar avança...
- Tudo isso é muito engraçado, mas não passa de conversa de gaja.
A audição e a visão - ao mesmo tempo - indignam-se. Não levantam o tom da voz.
- É uma questão que não se coloca.
Disseram ambas.
O paladar não se ficou...
- Muito bem. As senhoras querem que o sexo sentido, porque o mito diz que é exclusivo das mulheres, seja convidado para o seio do nosso grupo. É isso que percebi?
O olfacto, até então calado olha à volta. Faz-se silêncio na mesa.
- Vocês estão divididos, correcto? Tão divididos que nem me conseguem responder. Vá, o vosso melhor, por favor...
A visão, a audição e o olfacto anuem que sim, com a cabeça. O tacto, por quem nem se tem dado, também anui, com o olhar.
- Muito bem. A questão é saber se o sexto sentido entra e equilibra as forças ou se continua fora deste círculo fechado!
Entendo que não há excepções. Não deve haver. Entendo que - nem se trata de limites - a nossa função é estabelecer uma ordem nas coisas. Acho, por isso, que a intuição só deve ter a sua intervenção se for de todo impossível evitar. Reconheço que há momentos impossíveis.
Dizem que as mulheres captam um estado emocional com mais facilidade que os homens.
Isso pode dar vantagem. Não forçosamente.
O olfacto entra, finalmente, na discussão...
- Eu penso que o paladar tem razão ( o olfacto e o paladar, o gosto, o sabor e os cheiros e os aromas sempre foram cúmplices). Devemos ser pragmáticos. Devemos, em rigor, saber o que queremos, quando e como.
Há momentos em que, se nós os cinco agirmos em conjunto, cada qual no seu tempo exacto, não há sexto sentido que lhes valha.
Juntos somos mais fortes que qualquer intuição, por muito feminina que seja...
A visão...
- Vocês são tão pragmáticos, admito. Falta-vos aquele bocadinho assim...
Pergunta o paladar:
- Bocadinho de quê?
- Não é de quê; é de perceberem que, se o sexto sentido for um de nós, então aí sim, seremos aquilo que pretendemos ser, num todo.
- Eu sou o paladar. É só isso que pretendo ser. Dou prazer. Transformo matéria em desejo. Não preciso de mais.
- Eu sou o tacto. Eu sinto. O toque. Eu materializo. Eu guardo a textura da pele e dos cabelos. Não preciso de mais.
- Se querem ir por aí; eu sou o olfacto. Eu consigo inventar perfume e levá-lo de um pescoço até uns lábios e de lá não mais sair. Eu crio interação. Eu confundo. Não preciso de mais.
O lado feminino estava estupefacto com tamanha posição dominante, arrogante, desbragada, com que os outros três sentidos estavam a tentar alterar o rumo de todos os acontecimentos.
- Meus senhores, eu sou a audição. Eu permito que escuteis o som dos pássaros, o correr dos rios para o mar. Eu acalmo. Eu sei que não sou insubstituível. Eu sou eu e, ao contrário de vossas excelências, tão másculas, eu preciso de mais, de muito. De muito mais.
Não quero dar-vos apenas o escutar de tudo. Quero misturar-me com o aquilo a que cheiras, sabes ou reconheces, ou conheces.
- Porquê?
Isso não faz qualquer sentido,
diz o olfacto.
- Faz todo o sentido. Nós somos os sentidos. Nós sabemos interpretar os sinais e os recados.
A visão já se estava a passar.
- Calma, calma...
- Calma como?
A conversa vai daqui até ao sistema solar em...
É quando um alarme de um dos smartphones começa a tocar.
Diz o paladar:
- Lamento, é o chá das cinco.
Diz a visão:
- Lamentas porquê?
São cinco. Somos cinco. Sentidos. Sentados. Faz sentido.
- Lamento, falta aqui o sexto sentido. Devia aqui estar. Pronto, admito.
- O homem está doido...
A visão e a audição não acreditavam no que acabavam de ouvir. O paladar, sempre muito senhor de si continuou:
- Sabem qual é o vosso problema?
Pensam muito, para sentidos.
- Sentados! ( o tacto tenta fazer uma piada para que a conversa acabe bem).
A porta da sala abre-se.
- Boa noite a todos. Obrigado pelo convite que não me fizeram. É um prazer tomar chá convosco. São cinco. Não pensem mais nisso, vocês pensam muito, para sentidos, afinal, se não forem os cinco, ainda que sentados, que sentido faço eu?!
A água quente, por favor. E o açúcar, já agora...
28.08.14

SOBRE A INQUIETAÇÃO


The Cat Runner

Vem isto a propósito das férias.
Eu sei que parece estranho, mas nunca fui do tipo "vem aí as férias" ou "acabaram as férias". É estranho. Eu disse que era estranho ou que pode parecer.
As pessoas são assim. São todas diferentes. Não existem duas iguais. Garanto. Vi num programa na TV Cabo. Num documentário sobre a espécie humana. Eles explicam aquilo muito bem. Gosto muito de ver os programas deles.
Por exemplo, há pessoas que não são dadas a reuniões sociais, aquela cena das festas, das passadeiras encarnadas por personagens reais.
As pessoas são diferentes, eles explicaram. Pode comprovar-se, basta ligar a "Box".
Há, no entanto, pessoas que gostam de receber e outras que gostam de ser bem recebidas - diferente de aparecer -.
Coisas banais ou coisas apenas sonhadas. Mas eu vi!
Ainda ontem ao início da noite, - vem isto a propósito das férias, obviamente estou de férias - depois de um telefonema e imediatamente a seguir a começar o meu treino diário - corro corro e corro, correr é muito bom. Gosto tanto como dos documentários na TV Cabo. Gosto muito mais ainda.
Ia a dizer, reparei num Mercedez preto que estacionava em cima do passeio.
Aqui onde estou estaciona-se, ordeiramente, em cima dos passeios, sem que os passeios deixem de existir enquanto tal.
Aqui onde estou há uma espécie de Ordem implícita.
Há muito verde. Muitas árvores. Pouca gente. Parece haver um conhecimento colectivo, sem que na verdade ele exista.
Para quem segue a série Weed, - lá está, a TV Cabo - com carimbo; no genérico aparece o carimbo: Jenji Kohana, aqui onde estou, onde escrevo, faz lembrar Majestic, sem MILF, pelo que me tem sido dado a observar.
O Mercedez preto era novo. Tinha matrícula espanhola.
Aqui onde estou, onde escrevo há muitos espanhóis.
Falam muito alto e ao mesmo tempo. Falam uma "Babilónia" de sons misturados e, pasme-se, até se entendem.
De dentro do Mercedez preto sai um casal que me fez pensar: "uau".
Na casa dos sessenta, menos talvez.
Reparei, enquanto descia e eles subiam a rua que vestiam bonito.
Eu corria, logo é-me difícil detalhar todos os pormenores. Apenas a música que ouço faz o favor de ajudar a memória, que nunca fui de memorizar muitas coisas. Se bem que nos últimos tempos...
Bem sei que são eles que fazem toda a diferença, os detalhes.
Foi muito rápido. Mais rápido que a minha média de minutos por quilómetro.
Passei por ele e por ela. Cruzámo-nos, efectivamente.
Alterei a postura. Estiquei os ombros. Alinhei os braços. Silenciei a respiração. Tornei as passadas leves. Pus-me a rigor, como exigia a situação. Encarno a minha própria passadeira, cheia de brilho.
Apesar da música que ecoava nos meus ouvidos deixei um "boa noite" à minha passagem.
Retribuíram. Foi um "boa noite" em tom baixo, perceptível, firme e simpático.
Estas pessoas que vestem bonito gostam de perceber à primeira.
Não me espantou a retribuição do "boa-noite".
Liguei os meus espelhos retro (visores) mágicos e consegui vê-los entrar na mansão - acho que lhe posso chamar assim - que parecia não ter fim.
Sei que corro lento e longo, mas por muito lento que estivesse a correr a mansão era muito mais longa que a minha corrida.
Há muitas mansões e moradias e apartamentos aqui onde estou.
Onde escrevo não. Onde escrevo há um jardim e a noite e a música.
Há um luxo e bom gosto, aqui onde estou.
É da quietação que gosto. Um dos antónimos da inquietação.
Vem isto a propósito das férias.
Férias são luxo - não é por isso que nunca liguei às férias - nos tempos que correm.
Há gente que não tem férias porque a crise - a crise não é crise nenhuma, a crise é caso de polícia, à séria e só foi para aqui chamada porque teve mesmo que ser - lhes matou os sonhos, enquanto os vai mastigando, lenta e violentamente. Os detalhes, é verdade...
Os/nos. Todos. Quase todos. Muitos de nós todos.
Há gente até que nunca teve férias.
Aquele período ou períodos do ano em que colocamos o avião em velocidade de cruzeiro e abrimos as janelas do sossego ( ou do doce desassossego ) para entrar ar que revigora até ao primeiro dia de regresso à rotina. Passa rápido. Os documentários da TV Cabo também explicam isso.
Por isso, aqueles que passam férias são gente que pode ter esse luxo. Mesmo que seja luxo estar junto, apenas. Encontros demorados.
Tem vezes que estar junto é luxo. É risco. É cume. É queda. É abismo. É bom. É luxo. Às vezes!
Nem sempre são férias.
Nunca esperei meio ano para quinze dias de férias, por nada em especial. Na verdade faço férias repartidas. Todos os meses. Todas as semanas. Quando calha. Quando quero!
Sair de fora para dentro.
Enquanto corria ao longo do muro baixo da mansão, uma das tantas que existem aqui no lugar onde estou lembrei-me dos Espírito Santo. Que raio. Tudo isto em segundos, que foi quanto demorou aquele cruzar de gente.
Consegui ver um jardim com recantos, cadeiras, mesas, luz acolhedora. As janelas mostravam salas, quartos. Carros de alta cilindrada. Quase todos pretos.
Aqui onde estou a inquietação é só minha.
A mansão não pertence aos Espírito Santo coisa nenhuma, mas aqui onde estou dá ares da Comporta. Se calhar foi por isso.
As redes sociais garantem o ruído mínimo. Bastam. Basta!
Vem isto a propósito da inquietação. Vem isto a propósito das férias. Vem isto só a propósito de nós.
A preocupação com o que, normalmente, se encontra acima do entendimento.
Há consumição, apoquentação, agitação, apreensão, desassossego, ralação. Há sinónimos, tantos, certeiros, condição fundamental para se ser sinónimo.
Queima, aí fora.
Queimas-me, sol do Sul.
Não chego a ser um tipo estranho. Talvez seja como este texto; quietação e inquietação. Talvez seja como cada qual.
Mas sei que tenho a redenção garantida.
Limitei-me a dar férias à minha inquietação.
Ela gosta de luxos, fazer o quê?!
Eu gosto dela, fazer o quê?!
Gente que é um substantivo. Feminino. Inquietação!
Está calor, aqui no jardim da casa. Corre uma brisa fresca. Entras na dúvida, se entras. Se ficas. Sabes que não vais. Pelo menos por agora.
Apenas o ruído do vento entre as árvores incomoda.
Vem tudo isto a propósito de nada e a propósito de tudo!
Se calhar, só a propósito da inquietação que as férias provocam, sei lá!
27.08.14

MACARONS COM SABOR A SAUDADE


The Cat Runner

Se saudade fosse apenas uma palavra sem tradução estávamos nós todos muito bem.
Assim mesmo, sem vírgulas.
A saudade demora pouco tempo a manifestar-se. Chega a ser dominadora e gentil.
Os sintomas começam a ser evidentes ainda numa fase pouco adiantada. Procura-se a cura.
Pensa-se em círculos. A vida e a fantasia, em cada manhã amparada por uma floresta verde cortada ao fundo do horizonte por um azul-mar.
Saudade não é apenas uma palavra sem tradução.
Assim mesmo, sem vírgulas. Ela é o tudo e o resto.
Um veneno disfarçado de mel. Doce que rasga por dentro. Puxa-empurra. Dá gargalhadas verdadeiras e tem vezes que falo com ela!
Cara-a-cara.
Tem vezes que lhe agarro o queixo, com ambas as mãos, para melhor me fazer entender.
Na verdade, na verdade conversamos todos os dias.
Conversamos sobre um sem número de assuntos. O tempo que o tempo oferece. Só esse, e é tanto.
Ela ouve-me. Eu escuto-a. Às vezes olhamo-nos muito. Esse tempo todo que dura um olhar.
Silêncio. Outras vezes não. Recomeça. Falamos, falamos muito.
Acho que já o tinha dito, mas gosto de sublinhar que gosto de falar e gosto da saudade.
O silêncio, do nada, intromete-se sempre que lhe apetece. Não, não incomoda. Apenas surge do nada ou dessa conversa.
Para onde me leva. Ela decide. Ela tem as asas.
Ela tem "macarons" coloridos em sua posse.
Eu gosto dos castanhos e dos verde-tropa, que também os há.
Limito-me a seguir-lhe o rasto e o sabor.
Quando regressa a manhã - as manhãs são como o silêncio, mas muito mais ordeiras e regulares - aquele doce desfeito na boca acorda colado na alma e os sorrisos fazem-se tardar. Ou surpreendem ao abrir a janela. Gosta de "macarons" com sabor a saudade.
Lembra-se, correm-lhe imagens, rápidas, mas nítidas, de uma vez que a olhou sem que ela desse conta.
Saiu do carro, apressada, um ir que quer ficar.
Ele observou-a pelo retrovisor. Silêncio. Desviou o olhar.
Acendeu um cigarro, como nos filmes.
Tinha visto num filme que depois alguma coisa acontecia.
Assustado.
Lembrou-se não ter visto o filme até ao fim, apenas sabia que alguma coisa acontecia depois.
Abre-se a porta do carro, repentinamente, como o silêncio quando aparece. Com estrondo. Surpresa.
Há sorrisos felizes, como se os sorrisos fossem tristeza, alguma vez...
Eles são saudade!
Acende outro para o caminho.
Anuncia-se outra manhã enquanto pensa que não conhecer intimamente a saudade não serve de desculpa. Como se não a conhecesse, como se não soubesse ler os seus olhos. Não serve de desculpa.
Ele sabe que todos a querem, que todos gostam de a vestir com as mais finas sedas em tons escuros, como o fado.
Um xaile preto que aconchega os ombros. Que gela o coração.
Ela deixa-se seduzir. Ela ama seduzir.
Aceita o xaile preto. Dá uma meia-volta...
Bate com a porta do carro, de novo. Afasta-se.
Ela ama andar nua. Gosta do toque que intimida.
Sabe que quando se deixa seduzir consegue ser mais saudade.
Despe-se das mais finas sedas em tons escuros.
A saudade tem um gosto fino.
É por isso que saudade não tem tradução. Nem imagem.
Procurem no Google...
Saudade é um labirinto, mais que doença, mais que um fado.
E os labirintos também são vestidos, como vestem a saudade.
Eles também podem ser montanhas-russas. Despidas. Nuas, ou apenas labirintos.
Nunca ter sentido saudade dentro de um labirinto não serve de desculpa. Nada serve de desculpa para a saudade!
As tempestades são mais violentas, menos divertidas e até elas adormecem quando encontram a saudade.
Aconchegam-se. Falam de amor, dos risos, até dos olhares. Claro que falam dos olhares. E de outras coisas.
Em sintonia. Sintonias.
As rádios tocam a mesma música.
Ouvem-se guitarras dedilhadas e a dança é imaginária. Sonhava dançar com ela!
Pode ser fado, pode ser tango, pode ser jazz, podes ser tu ou eu. Pode ser saudade! Apenas.
A saudade ama as tempestades e o silêncio e só ela consegue amar duas vezes ao mesmo tempo, enquanto as guitarras se fizerem escutar, como o silêncio e a dança não morrer de velha.
Fecha-se a porta do carro.
Desta vez ela sabe que ele a observa.
Sacana, não sabe guardar um segredo.
Ela não olha para trás. Foi assim antes e assim foi agora.
Sente saudade, porque sente saudade até mesmo quando conversam.
Desaparece dentro da noite, para regressar com a manhã.
Fecha-se outra porta.
Apaga o cigarro.
Segue viagem.
A viagem tem sempre um destino, mas a saudade nunca terá tradução."