NINGUÉM ME LÊ
Este é um texto perigoso. o Feitiço pode virar-se contra este feiticeiro.
Corro o risco de me minimizar e corro o risco de querer parecer qualquer coisa que não sou.
Quando comunicamos, quando nos dirigimos a alguém, quando queremos tocar alguém com as palavras, temos sempre presente alguns cuidados.
Não brincar com religião, clubes de futebol, não dizer piadas - parte do auditório pode não gostar - e por aí fora.
Devemos ter sempre em ponto de mira os pontos negativos que queremos anular. A comunicação também tem as suas técnicas.
Por isso, assumidamente, vou assumir o papel de Calimero, a ver se puxo alguma audiência para aqui.
Nunca quis ser escritor (sabendo, desde logo, não ter capacidade para tal) e, é com relativa facilidade que chego a uma conclusão:
- Ninguém me lê.
- Ai não?
- Não.
- Já tentaste perceber porquê?
- Porque se calhar o que eu escrevo não interessa a ninguém.
- Fecha o blogue. Pensa noutra coisa que te agarre e seja criativa, ao mesmo tempo.
- Essa é a solução?
- Se ninguém te lê...
- Não fecho o blogue. Agora, só por embirração não fecho o blog.
Antes pelo contrário.
Ninguém me lê, leio-me eu.
- Vais escrever sobre o quê?
- Sobre as praxes.
- Sabes que isso é assunto sensível...
- Por isso.
Não tenho uma ideia fixa, uma posição definida sobre as praxes.
Fui praxado. Várias vezes.
Nunca fui praxado na universidade, porque nunca estudei na universidade. Formei-me numa escola profissional de jornalismo. Lá, não havia praxes.
Fui praxado na tropa. E, não fui obrigado a ir para a tropa. Fui porque quis e saí quando quis. Estive lá três anos, divididos em dois períodos, o primeiro quando fui voluntário e o segundo quando regressei após ter estado na condição de desertor.
Dois períodos distintos na minha formação como pessoa. A mesma instituição.
O último período explica-se com facilidade:
Quando regressei a Portugal apresentei-me, fui a tribunal militar, fui condenado, nunca fui preso, passei à disponibilidade antes do tempo devido aos serviços que prestei à organização e quase fui condecorado. A minha deserção foi um erro técnico. A instituição recebeu-me de volta, como um dos seus. Mesmo antes do final do tempo de "serviço" já me tinham permitido ir estudar jornalismo. Hoje em dia, faço sessões de mediatraining nessa organização que me fez ser um homem orgulhoso, com valores, princípios e, obviamente, carregado de erros.
O que conta é a primeira parte da história, antes do intervalo que dividiu o "jogo" em duas partes.
Assentámos praça em Tancos numa segunda feira chuvosa. Lembro-me dessa manhã. Apanhei o combóio. Parti sózinho para me fazer homem.
Entroncamento.
Os recrutas como eu saiam do combóio directamente para camiões cobertos com uma lona, gado. Era isso.
Durante dois meses fomos tratados como gado.
Ainda com o traje vestido, o traje civil, fomos sendo alinhados. Era tudo muito estranho. Tudo tão diferente. Um mundo diferente a uma cancela de distância.
À medida que iamos caminhando em direcção à secção do fardamento, conseguíamos perceber o inferno que seriam os nossos dias.
Gente grande, vestida de camuflado, chamavam-nos tudo. Prometiam-nos o Inferno, à medida que caminhávamos.
Eramos recrutas numa base de instrução. Aquela gente tinha dois meses para nos transformar em homens. Tinha começado o rito de iniciação.
Eramos obrigados a pedir licença para tudo, até para sentar, até para tossir.
À noite, os mais antigos entravam no bar reservado aos recrutas e eramos praxados.
Fizeram-nos correr em cuecas, horas, sob o frio da noite. Descalços.
Fizeram-nos fazer flexões e beijar o chão.
Encostaram-se a nós em simulações sexuais enquanto nos sussuravam ao ouvido coisas simpáticas sobre as nossas mães. Irmãs.
Deram-nos comida feita em grandes panelões. Enquanto comiamos conseguia ver os cozinheiros a lavar os panelões com vassouras.
Rapavam-nos o cabelo várias vezes.
Acordavam-nos, madrugada dentro, em autênticas noites das bruxas.
E, ao fim de dois meses, jurámos bandeira. A Bandeira.
Estava concluído o rito de iniciação.
Ficava o passado separado por uma bandeira, um valor, e o tempo presente, unido por uma causa. Uma causa comum.
No dia 4 de Agosto de1988 passámos a ser um entre iguais.
Não tenho opinião definida sobre as praxes.
Tenho, no entanto, uma certeza:
Elas existiram. Eu aceitei-as. Mas, não são elas que eu recordo. Não são as praxes.
O que me lembro desse tempo que parece ao mesmo tempo um tempo de ontem, tempo presente, o que me lembro é do Neves.
O Neves era intelectualmente destacado. Fisicamente, era uma dor de cabeça para o pelotão.
Na recruta, na tropa, quem não passar nos testes físicos, pode ser um génio, mas fica pelo caminho. Não jura a Bandeira. Não chega a militar.
E, o Neves apagava-se sempre que devia estar forte e firme, porra.
Ás sete da manhã já estávamos na Parada. Formados. Calção, camisola de alças e muito frio. O frio do Arrepiado.
Da Parada até à Porta de Armas ia um quilómetro, mais coisa menos coisa.
Ás sete e um quarto começava a sessão diária de TFM ou GAM, Treino Físico Militar ou Ginástica Até à Morte. Gostávamos mais do GAM. Dava-nos mais power, fazia-nos sentir mais duros, mais homens, mais capazes. Um dia, líderes. Militares.
Desde o primeiro até ao último dia, aquela pequena corrida, da Parada até à Porta de Armas, matava o Neves. E matava-nos a todos.
Mas, na tropa, como em qualquer instituição com tradição de seriedade, carácter e coragem, ninguém fica para trás.
Era um princípio e violar esse princípio tinha consequências gravíssimas.
Para lá da Porta de Armas havia mais uma dezena de quilómetros para correr, até chegarmos ao ponto de partida.
O Neves nunca ficou para trás.
Todas as manhãs, o stress e o cansaço tomavam conta de nós, por causa do Neves. Mas, ele nunca ficou para trás.
Chegámos a fazer quilómetros com o Neves às nossas costas , literalmente. Chegou a desmaiar. Chegámos a vomitar. Mas, ele nunca ficou para trás.
- Meu sargento, o Neves desmaiou.
- Caguei. Às oito e meia quero tudo formado na Parada, com farda de trabalho, para o pequeno almoço. Se o senhor Neves não aguenta ele que desista. Esta merda não é para panascas. Panascas!
E, o Neves chegava sempre ao fim, da Ginástica Até à Morte. Até ao pequeno almoço.
Durante dois meses fomos solidários com o nosso camarada. Isso implicou violentas discussões. Um prejudicava o todo. Mas, o todo só o era com aquele incluído.
Às vezes, ao fim do dia, o Cabo, lembrando a corrida da manhã, levava-nos para trás dos pavilhões e dizia-nos:
- Hoje, o dia correu bem (nunca corria bem). Vamos beber um Martini para comemorar. Cinquenta flexões.
Ou então, cem, porque o dia tinha corrido mesmo mal e tinhamos que "beber" o Martini, para esquecer.
O dia de instrução terminava às cinco da tarde.
As noites erram assustadoras. Não houve uma noite descansada. Em dois meses.
Noites surpreendentes. Instrução não programada, com dez minutos para sair fardados e com a arma para instrução nocturna.
Revistas ao alojamento, pela noite dentro.
Banhos frios. Frio.
Não tenho opinião sobre as praxes. Não foi isso que aqueles tempos me ensinaram.
Reencontrei o Neves há uns meses, no Facebook.
Não o via há mais de vinte anos.
Foi como reencontrar um irmão. E, mal falámos.
A propósito, o título e o início deste texto foi uma forma encontrada para tentar com que conseguisse ler, exactamente, este texto até ao fim.
É que de praxes percebo zero.
ZGQ