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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

29.01.14

NINGUÉM ME LÊ


The Cat Runner


Este é um texto perigoso. o Feitiço pode virar-se contra este feiticeiro.


Corro o risco de me minimizar e corro o risco de querer parecer qualquer coisa que não sou.


Quando comunicamos, quando nos dirigimos a alguém, quando queremos tocar alguém com as palavras, temos sempre presente alguns cuidados.


Não brincar com religião, clubes de futebol, não dizer piadas - parte do auditório pode não gostar - e por aí fora.


Devemos ter sempre em ponto de mira os pontos negativos que queremos anular. A comunicação também tem as suas técnicas.


Por isso, assumidamente, vou assumir o papel de Calimero, a ver se puxo alguma audiência para aqui.


Nunca quis ser escritor (sabendo, desde logo, não ter capacidade para tal) e, é com relativa facilidade que chego a uma conclusão:


- Ninguém me lê.


- Ai não?


- Não.


- Já tentaste perceber porquê?


- Porque se calhar o que eu escrevo não interessa a ninguém.


- Fecha o blogue. Pensa noutra coisa que te agarre e seja criativa, ao mesmo tempo.


- Essa é a solução?


- Se ninguém te lê...


- Não fecho o blogue. Agora, só por embirração não fecho o blog.


Antes pelo contrário.


Ninguém me lê, leio-me eu.


- Vais escrever sobre o quê?


- Sobre as praxes.


- Sabes que isso é assunto sensível...


- Por isso.


Não tenho uma ideia fixa, uma posição definida sobre as praxes.


Fui praxado. Várias vezes.


Nunca fui praxado na universidade, porque nunca estudei na universidade. Formei-me numa escola profissional de jornalismo. Lá, não havia praxes.


Fui praxado na tropa. E, não fui obrigado a ir para a tropa. Fui porque quis e saí quando quis. Estive lá três anos, divididos em dois períodos, o primeiro quando fui voluntário e o segundo quando regressei após ter estado na condição de desertor.


Dois períodos distintos na minha formação como pessoa. A mesma instituição.


O último período explica-se com facilidade:


Quando regressei a Portugal apresentei-me, fui a tribunal militar, fui condenado, nunca fui preso, passei à disponibilidade antes do tempo devido aos serviços que prestei à organização e quase fui condecorado. A minha deserção foi um erro técnico. A instituição recebeu-me de volta, como um dos seus. Mesmo antes do final do tempo de "serviço" já me tinham permitido ir estudar jornalismo. Hoje em dia, faço sessões de mediatraining nessa organização que me fez ser um homem orgulhoso, com valores, princípios e, obviamente, carregado de erros.


O que conta é a primeira parte da história, antes do intervalo que dividiu o "jogo" em duas partes.


Assentámos praça em Tancos numa segunda feira chuvosa. Lembro-me dessa manhã. Apanhei o combóio. Parti sózinho para me fazer homem.


Entroncamento.


Os recrutas como eu saiam do combóio directamente para camiões cobertos com uma lona, gado. Era isso.


Durante dois meses fomos tratados como gado.


Ainda com o traje vestido, o traje civil, fomos sendo alinhados. Era tudo muito estranho. Tudo tão diferente. Um mundo diferente a uma cancela de distância.


À medida que iamos caminhando em direcção à secção do fardamento, conseguíamos perceber o inferno que seriam os nossos dias.


Gente grande, vestida de camuflado, chamavam-nos tudo. Prometiam-nos o Inferno, à medida que caminhávamos.


Eramos recrutas numa base de instrução. Aquela gente tinha dois meses para nos transformar em homens. Tinha começado o rito de iniciação.


Eramos obrigados a pedir licença para tudo, até para sentar, até para tossir.


À noite, os mais antigos entravam no bar reservado aos recrutas e eramos praxados.


Fizeram-nos correr em cuecas, horas, sob o frio da noite. Descalços.


Fizeram-nos fazer flexões e beijar o chão.


Encostaram-se a nós em simulações sexuais enquanto nos sussuravam ao ouvido coisas simpáticas sobre as nossas mães. Irmãs.


Deram-nos comida feita em grandes panelões. Enquanto comiamos conseguia ver os cozinheiros a lavar os panelões com vassouras.


Rapavam-nos o cabelo várias vezes.


Acordavam-nos, madrugada dentro, em autênticas noites das bruxas.


E, ao fim de dois meses, jurámos bandeira. A Bandeira.


Estava concluído o rito de iniciação.


Ficava o passado separado por uma bandeira, um valor, e o tempo presente, unido por uma causa. Uma causa comum.


No dia 4 de Agosto de1988 passámos a ser um entre iguais.


Não tenho opinião definida sobre as praxes.


Tenho, no entanto, uma certeza:


Elas existiram. Eu aceitei-as. Mas, não são elas que eu recordo. Não são as praxes.


O que me lembro desse tempo que parece ao mesmo tempo um tempo de ontem, tempo presente, o que me lembro é do Neves.


O Neves era intelectualmente destacado. Fisicamente, era uma dor de cabeça para o pelotão.


Na recruta, na tropa, quem não passar nos testes físicos, pode ser um génio, mas fica pelo caminho. Não jura a Bandeira. Não chega a militar.


E, o Neves apagava-se sempre que devia estar forte e firme, porra.


Ás sete da manhã já estávamos na Parada. Formados. Calção, camisola de alças e muito frio. O frio do Arrepiado.


Da Parada até à Porta de Armas ia um quilómetro, mais coisa menos coisa.


Ás sete e um quarto começava a sessão diária de TFM ou GAM, Treino Físico Militar ou Ginástica Até à Morte. Gostávamos mais do GAM. Dava-nos mais power, fazia-nos sentir mais duros, mais homens, mais capazes. Um dia, líderes. Militares.


Desde o primeiro até ao último dia, aquela pequena corrida, da Parada até à Porta de Armas, matava o Neves. E matava-nos a todos.


Mas, na tropa, como em qualquer instituição com tradição de seriedade, carácter e coragem, ninguém fica para trás.


Era um princípio e violar esse princípio tinha consequências gravíssimas.


Para lá da Porta de Armas havia mais uma dezena de quilómetros para correr, até chegarmos ao ponto de partida.


O Neves nunca ficou para trás.


Todas as manhãs, o stress e o cansaço tomavam conta de nós, por causa do Neves. Mas, ele nunca ficou para trás.


Chegámos a fazer quilómetros com o Neves às nossas costas , literalmente. Chegou a desmaiar. Chegámos a vomitar. Mas, ele nunca ficou para trás.


- Meu sargento, o Neves desmaiou.


- Caguei. Às oito e meia quero tudo formado na Parada, com farda de trabalho, para o pequeno almoço. Se o senhor Neves não aguenta ele que desista. Esta merda não é para panascas. Panascas!


E, o Neves chegava sempre ao fim, da Ginástica Até à Morte. Até ao pequeno almoço.


Durante dois meses fomos solidários com o nosso camarada. Isso implicou violentas discussões. Um prejudicava o todo. Mas, o todo só o era com aquele incluído.


Às vezes, ao fim do dia, o Cabo, lembrando a corrida da manhã,  levava-nos para trás dos pavilhões e dizia-nos:


- Hoje, o dia correu bem (nunca corria bem). Vamos beber um Martini para comemorar. Cinquenta flexões.


Ou então, cem, porque o dia tinha corrido mesmo mal e tinhamos que "beber" o Martini, para esquecer.


O dia de instrução terminava às cinco da tarde.


As noites erram assustadoras. Não houve uma noite descansada. Em dois meses.


Noites surpreendentes. Instrução não programada, com dez minutos para sair fardados e com a arma para instrução nocturna.


Revistas ao alojamento, pela noite dentro.


Banhos frios. Frio.


Não tenho opinião sobre as praxes. Não foi isso que aqueles tempos me ensinaram.


Reencontrei o Neves há uns meses, no Facebook.


Não o via há mais de vinte anos.


Foi como reencontrar um irmão. E, mal falámos.


A propósito, o título e o início deste texto foi uma forma encontrada para tentar com que conseguisse ler, exactamente, este texto até ao fim.


É que de praxes percebo zero. 


 


ZGQ


 


 


 

16.01.14

OS PROFETAS DA DESGRAÇA


The Cat Runner

Um dia, num Verão "quente", já perdido nos tempos, no Estádio da luz ( no antigo ), quando cheguei com o Gonçalo Prego, para avaliar quão quente ia esse Verão, fomos recebidos por uma verdadeira guarda de honra.


Centenas de adeptos aglomeravam-se em frente à porta principal do estádio. O treinador estava prestes a ser despedido.


Quando cheguei, juntamente com o Gonçalo ( o cameramen ), fomos obrigados a passar por essa guarda de honra de sócios e adeptos que "espumavam" pela boca, ávidos de encontrar um culpado: nós, os que por ali apareceram.


Do meio da multidão surgiu uma frase que até hoje mantenho clara na minha cabeça: "Aí estão os profetas da desgraça".


Vem isto a propósito do suicídio de um menino, em Braga.


Vem isto a propósito de um "mea-culpa".


Não pretendo ser o "moralizador de serviço", até porque também eu pequei. Cometi um erro. E, é por mim que falo, apesar de todos os orgão de comunicação social terem cometido o mesmo erro.


Os profetas da desgraça!


Por vezes é isso que somos!


Não acho, no entanto, que sejamos tanto assim. Acho até que se não fosse os jornalistas a desgraça era maior.


Tenho orgulho, respeito e adoração pela minha profissão. Puno-me mais ainda, por isso.


O menino de Braga, humilhado na escola, terá colocado fim à vida. Deixou de aguentar tamanha humilhação.


Quinze anos de vida.


O meu filho fez este mês catorze. Podia ter sido ele. O meu ou o de qualquer um de nós. E, até disso nos esquecemos. Até ontem.


Mostrámos a cara, divulgámos o nome, violámos e violentámos.


Pela minha parte, involuntariamente, até ter sido alertado para o facto. Penso que pela parte de todos os outros também. 


Fomos descuidados. Imprudentes.


Era um menino. Não devia ter morrido menino. As almas bonitas não devem partir cedo.


Menor de idade, e por isso, objecto de proteção legal especial em termos de direitos fundamentais.


Citar o nome dele - uma vez que tal significa identificá-lo, situação que deve ser evitada em relação a menores de idade e em situações de fragilidade ( óbvias, neste caso, para a família), foi um erro. Generalizado. Eu, cometi-o!
Não creio que algum de nós o tenha feito deliberadamente.


Talvez, fruto da "velocidade" a que corre a informação. Um descuido. Sobretudo, um tocar de campaínhas dentro das nossas/minha consciências.


Se algum camarada meu não o fez, peço que não se identifique com o que acabo de escrever.


Hoje, depois de reflectir, peço perdão, enquanto jornalista, aos pais, aos amigos, à família do menino. 


Ontem, enquanto apresentava notícias revelei o nome, em todas elas. Alguém me alertou para o facto. Baqueei. Irritei-me comigo. Até hoje. Até agora.


O meu perdão não repõe a serenidade nem acalma os corações daqueles que perderam um menino. Quinze anos. Um menino. Nenhum menino deve morrer menino. 


Hoje, ontem, sem que o tenha feito de propósito, senti-me um "Profeta da Desgraça", por não cuidar dos outros, por ter falhado na minha profissão, na minha missão.


Podia ter sido o meu menino. Bastava pensar nisso, porra!


ZGQ

10.01.14

PATRIMÓNIO MUNDIAL DA AUSTERIDADE


The Cat Runner

FOTO


( FOTO: Expresso.Sapo.pt)


 


O enredo é Fruto da imaginação. Ficção. Tirando a parte do Benfica-Porto.Portanto, no fim, não diga que não avisei.


Como diz o povo,então, é assim:


Portugal deve candidatar-se a Património Mundial da Austeridade.


Está na hora de pedir contas aos representantes dos "credores internacionais", vulgo Troika, que representa a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu. Dizem que também representa a Alemanha, mas são más línguas.


É um imperativo de Estado.


O Estado que tem como primeira obrigação zelar pelos seus. Esse mesmo Estado que deve proteger os mais debilitados, encorajar a criação de riqueza, de criar condições para que os seus cidadãos sejam capazes de acrescentar valor, de serem produtivos, inspirados, felizes, basicamente.


Palavras tão na moda, tão actuais e próprias, contudo.


O Estado, do Estado, fazem parte as pessoas.


Um Estado é um país e um país contém pessoas lá dentro. É complicado mas é assim mesmo, desde o início dos tempos.


Pessoas.


O conceito é atingível por qualquer pessoa.


Dizer que as pessoas tem vida, vida, mesmo, família, amigos, aspirações, metas, pessoas.


Dizer isto é ser redundante.


O conceito é atingível, mesmo que assim não fosse, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é garante dessa condição (teoricamente): Pessoas.


É sobre os cidadãos que a austeridade, reconhecido como necessária, tem provocado estragos, a este ritmo, irreparáveis.


Para os que são agora adultos, para os que estão em fim de linha, para os jovens, para o futuro. Danos irreparáveis que vão atravessar gerações e gerações.


Danos irreparáveis provocados por erros "colossais". Erros admitidos. Mea-Culpa. Várias vezes.


Estragos nas vidas da maioria dos cidadãos, das pessoas. Estragos, reconhecidamente, desnecessários.


 


O Estado português deve pedir conta aos funcionários que representam quem nos empresta dinheiro, para o receber de volta, como pagamento de juros do dinheiro que emprestou (claro que é assim que funciona, não é uma ironia minha), porque não existe já, em toda a Europa e nos pontos do globo que importam, "viva alma" que não reconheça que a austeridade aplicada em Portugal, nos portugueses, na sociedade, nas empresas, nas escolas, um pouco por todo o lado, foi excessiva e errada na forma.


Destruiu. Destrói. Destruirá.


O espectro político português, o FMI, a UE, o BCE, quem conta, já o admitiu, publicamente, várias vezes, a forma errada como a receita foi aplicada em Portugal.


Não há dúvidas?


Isto é tudo fruto da imaginação...Não esquecer. No início eu avisei. Não assumo culpas neste texto fora de contexto.


Não havendo dúvidas, os representantes dos "credores" (desculpem a escrita mais terra-a-terra...defeito profissional) devem ser avisados que temos contas para acertar.


Se erraram devem reparar o erro.


Tal como Portugal está a fazer, através dos seus cidadãos, empresários, trabalhadores, reformados, novos, velhos, a reparar erros políticos, cometidos por pessoas. Ao longo dos anos. Basta olhar os últimos dez. Portugal está a cumprir, a morrer mas a cumprir. Diz que é mesmo assim.


Os "credores" são, em parte, neste momento, devedores ao Estado português.


Reparem o erro. Paguem. Somos todos pessoas de bem. Instituições de bem.


Assim, terra-a-terra e fruto da imaginação.


Pelo meio há coisas que acontecem com naturalidade.


Portugal tem um consultor de topo na Goldman Sachs, notícia de hoje.


A OCDE tem um novo responsável (nº2) pela Economia. Também português. Notícia de hoje.


Era um post interminável, nomear os representantes portugueses, todos.


Coisas que acontecem tão naturalmente como os excessos de austeridade reconhecidos, que roubam vidas, matam sonhos.


Depois, isto anda à roda, à volta, em círculo, e um terço do mercado segurador português é...chinês. De repente. Chinês que não entende de Seguros.


O imobiliário de luxo é chinês. A EDP, a REFER. Poupemos tinta...e tempo.


Bem vistas as coisas, fruto da imaginação (avisei no iníco), um terço de Portugal pertence aos "credores internacionais" (Europa-América), outro terço a investimentos angolanos e o último terço a investimentos chineses.Aqui, a Alemanha não conta, ela só quer mandar. Fica de fora. Neste texto.


América, Europa, Ásia e África, num só. Potência mundial, em potência.


Visto com olhar optimista:


Somos um - sempre fomos - ponto estratégico na economia mundial. A tal porta da Europa. O Mar de frente para nós.


Perdemos essa importância. Erros políticos.


Mas, com criatividade, podemos voltar a conquistar o respeito do mundo.


Faça as contas:


Importância geográfica e estratégica + 1/3 credores internacionais (EUA incluídos), 2/3 angola, 3/3 china = UCPFCC (United Colours of Portugal Forte Como o Caraças).


Isto, bem exploradinho, a juntar à parte dos "credores" nos deverem qualquer coisa, era cá uma cena!


Não estou no mercado, mas se souberem de alguém que precise de um consultor estratégico, com vasto conhecimento de política e bem parecido, facultem o meu e-mail, por favor.


Mas, avisem que é tudo no plano da ficção. A imaginação é tramada.


Pronto, domingo há clássico. Que ganhe o melhor. Quais credores quais quê!


Esta é a parte real da coisa. Gosto de finais assim.


 


ZGQ


 


 


 

05.01.14

OS REIS NAO MORREM AO DOMINGO


The Cat Runner


Hotel da Lapa, Lisboa.


Quinze de Março de 2003.


O Euro 2004 está a chegar e os patrocinadores lançam os trunfos para a mesa do jogo. Acções de charme junto de jornalistas de vários países, em vários países.


Passaram dez anos.


Há dez anos, o futebol ofereceu-me o momento mais mágico da minha carreira. Guardo-o a cores na memória.


No Hotel da Lapa, decorria uma acção, um evento para os media portugueses, uma promoção, vá, a troco de uma entrevista.


Uma acção organizada por uma marca de cartões de crédito.


As regras eram claras. Tudo muito organizado, profissional.


Cada orgão de comunicação social tinha um quarto de hora para fazer a entrevista, numa das suites do hotel, a dois homens.


Um brasileiro e um português.


Estavam lá todos os orgãos de comunicação social, nesse dia quinze de Março de 2003.


Um punhado de jornalistas estrangeiros, brasileiros, espanhóis, ingleses.


Hóspedes curiosos, na tentativa de perceber o que se estava a passar naquele recanto encantador da cidade.


O nosso quarto de hora, meu e do repórter de imagem, ia das três e um quarto ás três e meia da tarde. O tempo tinha que ser respeitado, tantas as entrevistas marcadas. A nossa era a primeira. Calhou!


Chegámos uma hora antes.


A rotina habitual, fazer o reconhecimento do terreno, estabelecer os contactos, mandar umas bocas, um café e mais um cigarro para matar o tempo.


Aproximava-se o momento.


Fomos encaminhados para a suite pelo director de comunicação da marca de cartões de crédito.


Entrámos na suite.


- "Dá-me licença..."


- " Olha quem é ele! Tás porreiro, Quaresma? "


- " Óptimo, e o King?"


Era assim que todos o tratavam também na intimidade. O Paulo Valente é que quase sempre lhe chamava Eusébio, mas o Paulo é a sombra de Eusébio, o grande amigo em todas as horas. O Paulo, não é deste filme. Foi ele quem me apresentou e aproximou Eusébio de mim, levando-me a intermináveis jantares ou almoços, a fantásticos jogos de futebol entre homens com barriga, torneios amadores em honra de Eusébio.


Conquistei-lhe a confiança, por causa do Paulo. Hoje, no funeral, vou dar-te aquele abraço e pedir desculpa por não ter atendido o telefone de madrugada.


Algo me impeliu a não o fazer. Havia naquele momento uma certeza em mim que quis recusar. Voltei a dormir. Desculpa, Paulo.


E, começámos na conversa, Eusébio e eu, numa suite do Hotel da Lapa, enquanto o outro entrevistado não chegava. As entrevistas era ao mesmo tempo, com os dois, para todos.


Falámos de bola. Ele, falou de bola. Eu, como habitualmente, quando nos encontrávamos, limitava-me a escutar.


Falámos de tanta coisa, em tão pouco tempo, e de Scolari também. Eusébio gostava de Scolari e Scolari gostava de Eusébio.


A conversa começava a ganhar sotaque brasileiro.


O director de comunicação do patrocinador estava a ficar impaciente. Só de conversa já iamos em uns deliciosos dez minutos.


Abre-se a porta da suite. Finalmente!


Eu e Eusébio estávamos sentados em dois cadeirões separados por uma mesa de centro.


Um cenário de entrevista, com o logótipo do patrocinador especado lá atrás.


Eusébio estava em linha recta com a porta. Sorriu e levantou-se.


Eu, rodei o tronco para trás. Pasmei e levantei-me.


Eusébio cumprimentou Pelé. Pelé abraçou Eusébio. Como irmãos. Foi o que senti naquele momento. E, hoje tenho a certeza.


Hoje, no dia em que o Rei morreu, Pelé disse: "lamento a morte do meu irmão".


Naquele dia lá atrás, naquele Março mágico, senti-me dentro de um filme sobre futebol. Um espectador interactivo, estupida e pasmadamente passivo.


Quieto. A ver no que dava. Pelé e Eusébio e eu. Numa suite de hotel.


- "Quem é esse amigo aí óh Eusébio?"


- "É o Quaresma, um amigo meu..."


- " Legau..."


- "Zé Gabriel Quaresma, que prazer, obrigado, Pelé..."


- " Senta aí, Quaresma..."


O director de comunicação do patrocinador estava à beira de uma apoplexia. Rubro. Olhos arregalados, ao mesmo tempo, assustadoramente esbogalhados.


Estava (ele) impotente. Sem coragem para interromper aqueles dois seres extra-terrestres. Eu também não tinha a coragem que lhe faltava. Era um espectador activamente passivo. Impaciente para entrar na conversa, mas já envolvido nela porque era a três. Assustado.


A minha cadeira de sonho estava, naquele momento, ocupada por um rei. A outra por outro. E eu ali!


- " Quaresma ", diz-me Pelé, enquanto roda a cabeça para a esquerda ( os reis estavam sentados quase lado a lado e eu estava de pé, entre os dois):


- "Você sabe quem foi o melhor jogador de sempre?"


O director de comunicação olha para mim e deixa escapar um sorriso denunciado. Agora quero ver como te safas, li-lhe no sorriso.


- " O melhor de sempre...Pelé, não consigo dar-lhe uma resposta..." (tremia que nem varas verdes mas não dava parte fraca. Eu!)


- " Consegue...eu, Eusébio ou Maradona?"


Quase deixei escapar aquele que para mim foi o melhor de todos os tempos, Maradona. Mas, consegui fazer um túnel a Pelé e saí a jogar, aflito.


- " Não posso, Pelé..."


Eu ajudo, diz Eusébio:


- " Foi o Pelé."


O brasileiro "irmão" de Eusébio olhou-me de novo, mostrou aqueles dentes brancos quando me sorriu e rematou:


- " O meu irmão é safado. Fui nada, Quaresma, foi esse aí. Esse é o melhor de todos."


Estou safo, pensei.


O director de comunicação voltava a picos de stress nunca antes vistos naquela suite do Hotel da Lapa.


A ronda de entrevistas ainda não tinha começado e já o nosso quarto de hora tinha ido à vida.


- "Bom, meus senhores, vamos começar?"


Respondem-me os dois que sim e quase em simultâneo...


- " Quaresma...o melhor de todos foi o Maradona".


Não acredito, pensei de mim para comigo, em pânico, sem perceber se estavam a gozar comigo ou a falar a sério.


- " A sério?"


Queria ter a certeza do que tinha acabado de ouvir.


Estava confirmado. Para os Reis o Rei era outro.


Estava tudo pronto para a entrevista.


Um momento único na vida de um jornalista de desporto, na vida de alguém que ama a bola. Pelé e Eusébio, lado-a-lado, ali, junto a mim.


- " King, posso pedir-lhe um favor?"


Eusébio acena afirmativamente.


- " O Carmona podia vir aqui tirar uma foto, não me parece que eu consiga estar mais uma vez consigo e com o Pelé juntos. Já perdemos tanto tempo que não era por mais um minuto..."


- " Vai lá chamar o Carmona".


Jorge Carmona é fotojornalista. Meu amigo, grande camarada, gente boa, que conheço há uns vinte anos. Um doido saudável.


Levei o Carmona a reboque até à suite. Corria contra o tempo e contra a vaga de irritabilidade que o atraso podia estar, eventualmente, a criar nos meus colegas. Mas tinha que arriscar.


A nossa entrevista de quinze minutos ia durar uma meia hora. Era um atraso desculpável. No fundo foram Pelé e Eusébio quem gastou a maior parte do tempo, à conversa. Eu limitei-me  ouvir. A escutar. Foi Pelé quem se atrasou. Foi Eusébio quem me deixou ir chamar o Carmona. É o Carmona que está a querer fazer arte, enquanto o tempo voa. Não faz click! Não me preguem na cruz, que eu sou pequenino.


- " Só mais uma...King...Pelé...Zé..." Click! Flash!


Ainda não estava tudo. Agora era a vez de eu fotografar o Carmona, de pé, entre Pelé e Eusébio, sentados em dois cadeirões separados por uma mesa de centro.


Deste dia quinze de Março de 2003 recordo-me como se fosse hoje.


No tempo, perdi o rasto ao dia em que, sem querer, apaguei a pasta onde estava a minha fotografia entre os Reis, que o Carmona me tirou.


Quis perder-lhe o rasto, a esse dia, muito mais hoje. Hoje, cinco de Janeiro de 2013.


O dia em que o Rei morreu!


E, a ti, Carmona, só te desculpo, por teres perdido o rasto aos teus arquivos, porque se não fosses tu esta história ficava como a fotografia que a acompanha, incompleta.


Falto eu, ali ao meio. Eu, que nunca de lá saí.


Não era esta a crónica que eu queria ter escrito. A primeira crónica deste espaço de afectos.


Eusébio morreu hoje.


Pelé lamentou a morte do "irmão" e eu sou testemunha.