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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

19.07.15

MANTENHO A OPINIÃO


The Cat Runner

BLOG1

 

Faz hoje oito dias.

Esta história aconteceu no domingo passado.

Uma corrida que ficou até hoje à espera para chegar ao fim.

Todas as corridas chegam ao fim.

Depois, embora gostasse, a minha vida não é isto.

Há que dar tempo ao tempo mas, um post de um amigo, que está em Cabo Verde de férias, no qual está uma fotografia, com uma chávena de café, um copo e o blog do Gato aberto no smartphone fez com que viesse terminar a corrida.

Durante toda a semana que antecedeu o Onyria Running Challenge, muito se falou sobre o cancro, nas redes sociais.

Nas redes sociais todos nós temos opinião sobre tudo e até temos opinião sobre nada.

Ainda bem.

Li aqueles que sofreram com o cancro, li aqueles que tornaram o tema num facto político, li aqueles que se indignaram, porque sim e porque não.

A minha opinião não é relevante. Cada vez relevo menos a minha opinião.

Tenho os meus próprios temas fracturantes e tenho que viver com eles.

Sim, também tenho pessoas de quem gosto muito que já tiveram, que ainda têm cancro. Eu, em Dezembro, também tive que retirar um tumor e, isso obriga-me a olhar para uma fotografia de jornal e a ter que ter opinião?

Não. Mas, isso sou eu. Nem sequer ter pessoas de quem gosto que tiveram ou têm cancro me legítima a ter opinião.

Aprendi, nos últimos tempos, a não ter opinião sobre tudo.

Obriga a um exercício de contenção extremamente difícil, mas é possível de realizar.

Não me leram uma linha sobre a aparição da mulher do primeiro-ministro em público.

Na verdade, quem me lê até leu uma linha, sim.

Publiquei um post que dizia mais ou menos isto: "como todos temos opinião sobre o cancro, que tal juntarem-se à Onyria Running Challenge 2015. Ter opinião ajuda mas, ajudar mesmo, ajuda muito mais".

Não sei se alguém se levantou como eu, às sete da manhã, fez uma porrada de quilómetros, gastou gasóleo, pagou portagens a peso de ouro e foi correr. Correr pelo Rafael. Correr com o Rafael.

Eu não conheço o Rafael, por outro lado, conheço-o, só que ele não sabe e eu também nunca estive com ele. Até domingo passado.

Nem sequer o vi ou ele a mim.

Como escrevo sobre todas as corridas em que participo, tenho por hábito ler qualquer coisa sobre as corridas, antes de as correr.

A história daquela manhã de domingo é simples, bonita. Principalmente bonita.

É a história do Rafael.

E começa assim:

BLOG2

Corremos cinco quilómetros, sempre ao lado do mar, contornámos no Guincho e depois foi um ver se te avias, com o vento que antes nos empurrava para trás, agora a empurrar-nos para a frente.

Voar, com o mar do mesmo lado do horizonte.

Marcaram, inteligentemente, a corrida para as 9 e meia da manhã, pela fresca, ainda sem o sol que nos quebra. Havia o vento.

Gosto das corridas porque costumamos (re)ver gente que normalmente não vemos, costumamos (re)encontrar gente que já vimos.

A protagonista da história sobre a Corrida do Arroz, na Lezíria, ( http://thecatrun.blogs.sapo.pt/volto-ja-34894 ) cruzou-se comigo, vinha eu para a baixo, em direcção à linha de chegada, ia ela para cima, em direcção ao Guincho.

Um reencontro que nos deu mais energia nas pernas e mais sorrisos na cara - eu costumo sorrir quando corro.

Até o meu recente amigo do Facebook, o Eduardo Santinni diz que me viu:

- "Ias tão concentrado que nem te quis incomodar".

Tinha razão, o momento não era para comer os melhores gelados do mundo.

Na volta do caminho, ao quilómetro cinco, havia um posto de abastecimento. O único.

Avisto alguém, que ultrapasso pela direita - sempre fui um transgressivo -, alguém que conheço perfeitamente, com quem cortei relações em toda a linha há uns meses.

Segui mas, na volta da corrida, reparei que ele reparou em mim.

Por segundos pensei acelerar. Assim fiz. O vento ajudava.

- "Zé, embora lá..."

Surpreso, olho para a esquerda.

Não me recordo o que lhe respondi.

- "Zé, temos que falar".

- "Liga-me".

Normalmente não consigo ser hostil depois das tempestades.

A corrida quebrou o gelo, ele não me telefonou, ainda bem.

já refeito do encontro iemdiato de terceiro grau, a 3 quilómetros do fim, saquei do truque habitual.

Sentia-me bem - apesar de estar a esticar -, embora moído.

BLOG3

 

Tenho passado o último mês a treinar Muay Thai e a correr. Descanso apenas ao domingo. Não no domingo passado.

Colei-me a uma senhora.

Segui-lhe a passada.

Desta forma consigo ignorar o esforço, vou concentrado para não lhe trocar os pés e ao mesmo tempo para manter o ritmo dela.

Não dá para pensar em muito mais. É continuar para chegar ao fim.

Percebo que ao longo da berma o marido e a filha a seguem, em bicicleta.

- "Come on mummy, you will do it".

Pedi desculpa à família, expliquei que ela me estava a puxar e que com aquele ritmo ia bater o meu tempo - e bati -, disseram-me qualquer coisa que não percebi, a música estava alta. Pelas caras percebi que, de certa forma, também eu estava a ajudar aquela mamã e mulher a correr em direcção ao seu próprio objectivo. Não que ela me tenha pedido. dava jeito aos dois.

A filha já pedalava, entretanto, ao lado esquerdo da mãe. O marido na berma, do lado direito, eu atrás.

Ela olha-me e diz que já me tinha sentido e à minha respiração.

Disse-lhes que faltavam 2 quilómetros e que estávamos a uma média de cinco minutos e pouco por quilómetro.

Reparei que o marido também lhe dava contagem de tempo e água.

Ela acabou primeiro do que eu.

A subida nos últimos 500 metros matou-me.

Mas, tenho aprendido no Muay Thai, há sempre mais alguma coisa para dar.

Tu decides se dás!

Pela primeira vez fiz os dez quilómetros em 58 minutos.

No fim, ele voltou a dizer-me: "temos que falar".

Disse que sim mas, prefiro assim. Por agora, pelo menos.

Eu achava que conhecia esta pessoa. Não sei se me enganei.

O Rafael não me conhece, nem eu a ele.

Mas, foi na corrida, que idealizaram para ele, para o Rafael, que tudo isto aconteceu.

Foi nesta corrida que revi o Filipe, meu antigo colega, com quem estive anos sem falar, simplesmente porque não nos conhecíamos e achávamos que um e outro éramos coisas diferentes.

Encontrei o Filipe mesmo antes do tiro de partida.

Ele também lá estava pelo Rafael. Como eu.

O Filipe produz um programa sobre corridas e o Rafael era (e é) o protagonista desta história.

Ele é colaborador do grupo Onyria.

Descobriu que tinha leucemia.

A leucemia é um cancro. No sangue.

A empresa, em vez de o atirar para um canto, decidiu-se por algo que uniu milhares de pessoas, na primeira e na segunda vez.

A corrida une as pessoas. Aprendi que há mais coisas que unem as pessoas. O Muhay Thai une as pessoas. Tornamo-nos mais confiantes, mais solidários, mais atentos, mais preocupados, mais amigos.

Sim, uma espécie de irmandade natural.

O grupo empresarial Onyria decidiu realizar uma corrida para ajudar o seu colaborador.

Rafael, um colaborador com nome. Longe dos números frios. Um nome.

A corrida do ano passado permitiu que Rafael tivesse estabilidade financeira para todos os seus tratamentos contra a Leucemia.

A edição deste ano teve como parceiro a Associação Portuguesa Contra a Leucemia. O objectivo desta segunda corrida foi para lá do Rafael.

Reunir fundos para o projecto Casa Porto Seguro.

"Este projecto tem como objetivo criar um local onde familiares de pessoas em tratamento no IPO de Lisboa, possam ficar no decorrer dos tratamentos dos seus familiares e amigos.

Atualmente, os familiares e doentes, por questões de carência económica, ficam muitas vezes a dormir na rua, em carros ou em outros locais pouco dignos".

O Filipe estava lá para correr e para fazer a reportagem. Ele entrevista as pessoas a correr.

O Rafael estava lá para provar que, apesar de termos opinião sobre tudo e às vezes até sobre nada, a brisa vinha mesmo do mar, o vento era mesmo fresco e forte, o alcatrão misturava-se mesmo com a areia da praia que o vento trazia.

Só soube depois que o Rafael tinha ido correr.

Corram, pessoas, corram, gente, corram antes de pensar, antes de falar, antes de escrever, antes de terem opinião. Corram.

Se não gostarem de correr vejam este vídeo. Se gostarem vejam também. Sobretudo se gostarem de correr.

Um dia hei-de conhecer o Rafael e hei-de correr com ele.

Eu já conheço o Rafael e já corri com ele.

Mantenho a opinião.