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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

03.06.17

EM NOME DO PAI


The Cat Runner

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Zé Manel é um homem do Douro.

O Douro é ele próprio, dentro e fora de si. Salta-lhe pelos olhos brilhantes, por detrás daqueles grossos óculos de massa preta.

Basta olhar para ele.

Observa-se à primeira, entende-se-lhe os sinais e os segredos da vinha, da terra e do sol.

Também transporta chuva no olhar e vento na alma, que os olhos não mentem, nunca. Nunca nos mentem, os sacanas.

Zé Manel é um profundo, culto, sábio e exímio contador de histórias, histórias da vida, da vida dele, sobretudo, que pouco gosta de falar da vida dos outros.

Numa dessas noites, em redor da mesa grande, disse-lhe eu:

“O senhor conta histórias com tinta que lhe sai da medula”.

A frase é do Gabriel, o Pensador, o outro, não eu, não minha, desta vez.

Mas, não era fácil acompanhar aquela inteligência, sentada à minha frente, por isso plagiei, plagiador, me confesso.

Culto, intelectualmente muito desenvolvido, homem das artes, do vinho e da beleza, Zé Manel ficou a pensar que aquela frase do caraças era minha.

E, eu senti-me bem com isso.

Zé Manel é casado – há uma vida – com Luísa.

São das pessoas mais fantásticas que conheci até hoje, e olhe que já levo uns anos por cá.

Conhecemo-nos há uma semana, por alturas em que escrevo este texto, uma semana depois.

São ambos do Douro.

Herdaram a Quinta da Senhora da Graça, ali pelos lados de Santa Marta de Penaguião.

A filha, produtora de cinema e televisão vive em Lisboa, visita-os regularmente, naquele refúgio que deve continuar secreto – ou quase – para todo o sempre.

São gente feliz, gente boa, gente de quem não apetece sair de perto.

Cheguei na quarta feira, a corrida era no domingo.

Na primeira noite dormi. Ponto.

Na segunda noite chamaram-me, e eu fui.

“Carla, tenho ali um arroz de forno e vou fazer umas alheiras, querem vir?”.

Fomos.

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Ali ficamos pela noite dentro, comendo, bebendo, conversando, que à mesa, no Douro, conversa-se.

Zé Manuel é um homem marcado pela guerra. Nunca a quis, nunca a entendeu, nunca a esqueceu. Nem ao pai.

Chamava-se Armindo Lopes.

Nem a mãe, li, olhos molhados, um dos muitos poemas que Ze Manel escreveu, durante a guerra.

Operações Especiais, na Guiné.

Escrevia, “porque não havia mais nada para passar o tempo, ou estávamos a combater, ou a escrever, eu escrevia”.

Os poemas, guardou-os todos. Anos mais tarde passou a computador e juntou-lhes fotografias daqueles tempos.

Mostrou-me-os todos, um a um.

Li-os, à sua frente. A tinta que lhe saía da medula, poemas de breves linhas, tão cheios, tão carregados, tão reais.

As saudades da mãe, que todos temos, da nossa mãe, toda a vida.

Esse, no final, fez-me chorar, que sou um merdas de um chorão.

A cada linha um nó na garganta.

“Sabe, Quaresma, sabe aquilo que eu fiz, fiz tanta coisa que me arrependo...”.

Silêncio. Eu só podia estar em silêncio.

“Todos estes poemas, que eu escrevi lá, não tinham a ver comigo, era a forma como os meus olhos viam as histórias dos meus camaradas, nos olhos deles, era assim que eu exorcizava”.

Luísa conversava com a minha mulher, a nosso lado, mas anuindo, com constância, ao que me contava o marido.

“Sabe aquela expressão: trabalhar como um galego?”.

Abanei a cabeça, sorri.

“Quando eu era miúdo, na escola, os meus colegas gozavam-me, chamavam-me oh galego, e aquilo magoava-me. Um dia contei ao meu pai”.

Armindo Lopes era um homem bastante conhecido, na Régua.

Zé Manel lia muito, ainda cultiva esse hábito.

Tão conhecidos como Armindo Lopes eram os versos de Pedro Milanos, que Zé Manel devorava.

Apreciava aquele escritor, aquela escrita, os poemas que faziam viver o seu Douro.

“O meu pai levou-me à varanda e disse-me, olha aqueles socalcos todos, vês?

Imagina os milhares de socalcos, que foram feitos para sustentar as terras, para que não caíssem...”.

Zé Manel imaginou (o seu grandioso Douro), de olhos fechados.

“Quando te chamarem galego, na escola, diz-lhes que foram os galegos que construíram o nosso Douro, no início de tudo”.

Quando Zé Manel regressou à escola, no dia seguinte, ele sorriu aos cruéis companheiros.

“Sou galego, sim, sou orgulhoso daqueles que cavaram a terra que nos faz respirar”.

Contou-me, à mesa, já na terceira garrafa de rosé Pedro Milanos (é o nome do vinho que produzem na quinta, em homenagem ao pai), que o tinto tomámos no dia seguinte, e o fabuloso branco não havia, que um dia, em casa, miúdo, lendo mais um poema de Pedro Milanos, Zé Manel descobriu algo que o marcou até hoje, para sempre.

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Tanto o pai lhe ensinou.

Ao ler esse poema, a escrita soou-lhe tão íntima que deu por ele a pensar quem seria Pedro Milanos, o escritor a que ninguém conhecia a cara.

Olhou vezes sem conta, para as palavras que tinha à sua frente, e como que saído do nada, o nome: Armindo Lopes. O nome do pai.

Pedro Milanos era Armindo Lopes.

A, D, E, I, L, M, N, O, P, R, S.

Armindo Lopes era o seu pai.

Um e outro, ambos, o mesmo.

O poema ficou imortalizado nos rótulos das garrafas.

O poema é este, lido por Zé Manel, de viva voz.

É que eu não gosto de escrever coisas que não posso provar.

 

 

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