ALL WE NEED IS LOVE... AND RUN
(Foto by the Cat)
Hoje dei uma tareia a mim próprio. Uma auto-tareia, portanto.
Escrevi tanto, mas tanto, que aproveitei a embalagem e comecei a escrever este post.
Já tinha pensado escrever sobre o que vou escrever, há dias.
Tem a ver com sustos de morte, no caso, enquanto se corre.
Já lá vamos.
Eu acho que ninguém acredita se eu disser que hoje escrevi 8 - oito - reportagens de televisão, cada uma com a duração média até dois minutos.
É uma empreitada.
Eu sou uma espécie de empreiteiro da televisão.
Construo conteúdos, faço reparações e até corro. Tenho tempo para tudo.
Esta manhã não falhou.
Agora que aprendi a gozar os ares matinais o dia corre bem melhor, parece que dura muito mais.
Oito peças escritas é um exagero, no entanto.
Mas é assim que é.
Nesta empreitada corro contra o tempo, por isso aproveito-o, optimizando-o, levantando-me cedo, correndo os meus quilómetros. Consigo fazer tudo.
O dia sabe bem melhor.
Comprometi-me comigo, segundo o calendário, a ter escritas e prontas a editar, até final da semana, 14 peças, 14 textos, 14 reportagens, para se perceber. Afinal são 15.
Na segunda feira passei o dia a visionar discos. Sim, agora não se ouvem, visionam-se. Estou a brincar.
Passou-me um disco mas, como fui eu quem fez as entrevistas, não precisei de saber as deixas e os tempos para escrever o texto correspondente a esse conteúdo. Está escrito.
Na segunda visionei o material, esta terça fiquei em casa.
Adoro a minha casa nestes dias de sol tímido. O som dos pássaros, do meu pássaro que ficou viúvo há meses, o horizonte da planície, o jardim lá em baixo.
Dias de sol tímido.
Passo noventa porcento da minha vida profissional cercado de pessoas e barulho por todo o lado, solicitações e exigências, compromissos e tarefas.
Os outros dez porcento passo-os aqui, onde escrevo, onde o sol parece tímido e as cores ganham cor.
Escrever oito reportagens, tanto podem ser escritas aqui, em casa, no sofá, como foram, ou numa esplanada, numa biblioteca, ou na redacção, em um dia é coisa de loucos.
Não se pode ter tudo.
Tive o sol tímido e as cores do campo mas, para poder ter estou com pré-calos nas pontas dos dedos, de tanto teclar.
As teclas ficaram côncavas. É assim que as sinto.
Na verdade, trabalhei praticamente as mesmas horas que trabalho quando estou na redacção, mas dividi-as. Renderam muito mais e os textos estão prontos.
Apetecia-me ir correr. Fui de manhã. Estou a brincar. Outra vez. Já é tarde.
Ainda não é hora de cantar vitória.
Esta terça preciso de escrever mais sete textos.
Repito o dia, só não vou à acupunctura nem às compras para a casa.
Quero ter as 15 reportagens escritas até quinta feira, porque na quinta feira tenho um directo marcado: apresentação da Volvo Ocean Race 2015.
Eu gosto de funcionar assim, tudo arrumadinho, no meu caos.
Primeiro recolhi material, agora escrevo, quinta feira passo à próxima fase.
Concluo esta fase e avanço.
Sou pragmático e metodicamente desorganizado.
Começo nessa altura a pensar na viagem a Newport, Estados Unidos, na próxima semana.
Planificar, apesar de não haver agenda mas, planificar precisa-se e, para isso, há etapas que têm que ser queimadas. Só assim avanço para a próxima.
Quer isto dizer que tenho alguma flexibilidade na gestão do meu tempo, durante estes dias.
Será fácil perceber que, apesar de eu ter a doença do sono, tenha decidido começar a correr pela manhã e com companhia.
Deixamos os miúdos no liceu, corremos juntos, tomamos o pequeno almoço na esplanada e ainda temos um dia inteiro. Inteirinho.
Este cenário parece perfeito. Temporariamente perfeito.
Só que isto esteve por um fio para não acontecer.
Eu conto:
Há dias apanhei um dos maiores sustos da minha vida.
Trauma.
Decidi não correr mais com a Carla, a minha nova companhia na corrida. Por causa desse susto.
Não há melhor momento que aquela hora que passamos juntos, vive-se muito, mas obriguei-me a tomar essa decisão, que não cumpri.
Não consigo cumprir, gosto de mais dela e de correr com ela para cumprir com a minha decisão.
Prometi-lhe nunca mais a assustar.
Ela cedeu e continuamos a correr juntos.
(Foto by the Cat)
Tudo aconteceu no sábado.
Só visto, porque contado é difícil acreditar.
Corro quase todos os dias, só que aos sábados há alguma coisa de magico nas manhãs de corrida junto ao rio, no meu santuário.
No passeio ribeirinho cruzo-me com gente que não via há anos, há bons dias transpirados e sorridentes. Há muita gente, aos sábados, no passeio ribeirinho. E como eu gosto de gente.
Costumo apreciar tudo, a música, os miúdos da canoagem e da vela, os mais velhos, que ainda há uns meses caminhavam vestidos normalmente e que agora até já usam ténis de corrida, o que eu sorrio quando passo por eles.
Eles marcam o seu próprio ritmo e eu adoro correr com a minha nova companheira de corrida.
Os nosso ritmos são diferentes.
Nunca fazemos a corrida totalmente lado a lado porque chega um momento em que preciso de acentuar o ritmo e ela ainda não acompanha, o que é normal.
Começamos juntos, quando decido ir sózinho vou, depois volto para trás, continuamos juntos e assim vamos de um lado ao outro. Tem sido assim nestas manhãs e nestes sábados. Estou a aprender a gostar e gosto mais e mais.
A meio do caminho fiz sinal que ia acelerar e fui-me embora. Já tinhamos passado pela Catarina. A Catarina vem todos os dias em sentido contrário e sem parar damos um toque um no outro, com a palma das mãos.
É já um ritual.
Enquanto a Carla, a minha nova companhia na corrida fazia o seu caminho eu fui até ao fim da vila e quando voltei, de novo a meio caminho, via-a ao longe.
Nós temos o hábito de ouvir música enquanto corremos, por isso não ouvimos o que nos rodeia. Ali é seguro. Damo-nos a esse luxo. Algum cuidado com as bicicletas que rola na nossa pista, com a delas ali ao lado, às vezes ocupadas por pessoas que correr, mas é pacífico. Tranquilo.
Quem corre sabe que a concentração é absolutamente decisiva.
Quem corre sabe que estamos sós, connosco, isolados do que nos rodeia, embora observadores, mas sós.
Onde é que eu fui buscar o raio da ideia de acelerar até chegar perto dela e dar um salto apoiado nas suas costas?
Eu corro, devia saber que isso não se faz.
Só que nunca imaginei o que aconteceu a seguir.
Parámos a corrida, sentámo-nos junto à margem.
Ela chorava.
Fiquei sem reacção, ela não é de chorar.
Sem reacção e sem palavras.
E, mesmo assim, não medi a dimensão do acto.
Certifiquei-me que estava (aparentemente) bem, melhor, a recompor-se e continuei a correr.
Ainda queria fazer mais uns quilómetros depois do ponto de chegada.
Ela chegaria enquanto eu alongava.
Imaginei que fosse apenas um susto.
Algum tempo depois voltámos a estar juntos, mesmo no final, já junto ao carro.
Ela continuava a chorar. Ela que não é de chorar.
Provoquei-lhe o maior susto da sua vida e, a mim próprio.
Foi só aí que me dei conta. Mais do que o susto foi toda a reacção física e psicológica que provoquei.
Um choque.
É imaginar estar no paraíso e de repente tudo tremer à volta.
Uma simples brincadeira que quase a matou de susto, literalmente.
E, nem me apercebi.
Confidenciou-me depois que quase não conseguiu fazer os dois quilómetros que faltavam.
Decidi não voltar a correr com ela.
Pensava ser a única forma de me perdoar. Eu, a mim.
Uma simples brincadeira que podia ter sido algo que me iria marcar para sempre.
A minha decisão durou um dia.
Na corrida seguinte ela foi sózinha.
Contou-me que, enquanto corria, olhou várias vezes para trás, como que por impulso.
A coisa foi mesmo séria.
A única forma de me perdoar era voltar a correr com ela. Não o contrário.
Deixámos os miúdos no liceu, parámos o carro no centro da cidade, a uns duzentos metros do rio e da nossa pista, e fomos juntos, como sempre, até ao momento em que me apeteceu acelerar e voltar e acelerar e voltar para junto dela.
Ela não olhou uma única vez para trás. Tenho a certeza.
Depois, fomos tomar o pequeno almoço, que o dia ainda estava a começar e o amor não se compadece com sustos de morte.
Com a corrida, talvez!
Com a corrida, sim.
Nunca tinha amado tanto, enquanto corria.
Hoje amei correr.
Amanhã vou repetir o amor.