ALICE E A CAVERNA
Dia 10
10/10/2016
Coisas do coração…
Apetecia-me escrever-te um poema. Dedicar-te um poema bonito. Mas, Alice, não o consigo fazer.
Nunca fui bom com as palvras, com a poesia, li poucos autores, escrevi raros poemas, evito assim fazer figuras tristes, mas queria escrever-te um poema.
Um dia, quando cresceres, talvez vás entender (não sei se sim, se não, não sei como funciona a cabeça dos gatos) que em dez dias conquistaste o meu coração, e o corações deles também.
Lá longe, daqui a tempos, estou certo, vais olhar-nos com a mesma ternura e doçura e vais abanar a cauda e dar um pulo no ar, por estares feliz. Tal como costumas fazer.
Acho que me estou a apaixonar por ti. É possível, Alice?
Parece-me!
Já damos por nós, todos os quatro, quando entramos em casa a cumprimentar-te e a saber de ti, mesmo antes de dar-mos um beijo aos outros.
És sempre a última pergunta da chamada telefónica: “como está a Alice”, és o único ser vivo que se permite estar debaixo da mesa onde comemos, até porque não dás descanço aos nossos pés e eu nunca dei comigo a obrigar-me a ir à cozinha, só para te espreitar, só porque sinto saudades de te ver brincar com a bola de prata, que sobrou do embrulho do lanche do Rodrigo.
É a simplicidade que me emociona.
Acho, Alice, que é isso que me fascina em ti; do nada fazes tudo.
Eu, para o Rodrigo:
“A nossa cozinha parece um teatro de guerra, olha para o chão”…
Riu-se e concordou.
“Já contaste a quantidade de rolos de papel higiénico acabados, ovelhas e tubarões de borracha, bolas com guizos e bolas sem guizos, coloridas, bolas de papel, de papel-prata…”
“É para aprenderes, pai, queres sempre tudo direitinho, arrumadinho, agora a Alice tramou-te”.
A Alice tramou-nos a todos, em apenas dez dias, desde o primeiro momento.
Alice entrou nas nossas vidas, e com os restantes não sei, a mim, levou-me a viajar, até há uns 14 ou 16 anos, na altura em que nasceram os meus filhos.
Exemplo materializado de amor incondicional.
A luz que me indica o meu próprio caminho.
Alice, com as devidas distâncias, faz-me sentir outra vez pai de uma menina.
Os cuidados. A preocupação.
Dou comigo preocupado, do nada, só por perceber que não sei se está bem, calculo que esteja sempre bem, mas dou comigo a pensar.
Os dias passam, Alice cresce, muda, nós mudamos com ela, por causa dela, por ela e cada vez com mais cuidados.
Agora, agora a preocupação chama-se arca congeladora.
Para além do teatro de guerra que é, actualmente, o chão da minha cozinha, onde descansam ovelhas, tubarões, rolos de cartão e outras coisas com cores e guizos dentro, Alice decidiu que tem que voltar à força ao lugar onde (deve ter sido) foi feliz.
Refiro-me à ficha tripla rectângular, atrás das máquinas, onde já aterrou uma vez.
Para além de tudo o que descrevi, agora tenho não uma, mas duas garrafas de litro e meio no chão da cozinha, junto às maquinas e à parede. A fazer tampão, improvisado.
Uma de cada lado, impedindo assim as investidas de Alice, ou as tentativas de investidas, num espaço onde é impossível passar, onde é gatamente (humanamente para gatos) impossível passar.
Entre a parede e a traseira das máquinas vai menos de metade da largura de Alice, ainda assim ela mete a cabeça, como se não houvesse amanhã, para se passar para o outro lado.
Duas garrafas grandes, uma de cada lado, resolveram a questão, até ver.
Alice já não investe, limita-se a chegar ao pé da garrafa, deita-se no chão e, ali fica, a observar o seu próprio reflexo, espelhado na(s) garrafa(s).
É um assunto ao qual irei dedicar, em breve, umas linhas, a relação de Alice com as sombras, tal como na “Alegoria da Caverna”.
Sou eu, humano, quem tem a visão da realidade distorcida.
Sou eu o meu próprio prisioneiro, porque acredito nos conceitos pré-feitos, nas imagens, na informação que recebo pela vida fora.
O mundo é aquela garrafa, onde Alice se observa numa imagem ampliada, hiperbólica, a “caverna”, o mundo feito de imagens que não representam a realidade.
A realidade.
Só a conseguimos conhecer, como na “Alegoria”, quando saímos da “caverna”, quando nos libertamos do espatilho social e cultural.
Ou, quando de repente, Alice se levanta, dá o seu célebre salto no ar e sai a correr, como um raio fulminante, assustada por aquela imagem de gata bela, mas gigante, só por isso assustadora, para ela. Bela, ainda assim.
A garrafa é a caverna de Alice.
A cozinha, o seu mundo.
E, lá vamos filosofando, um dia atrás do outro, que a realidade distorcida nem sempre é má.
Depende da “caverna” de cada um de nós. Todos temos a nossa caverna.
Depende da imagem gigante que cada um tem de si próprio.
Tenho saudades de Alice e ainda são dez da manhã.
Nunca mais são cinco da tarde!