A TEMPESTADE DENTRO DE MIM ( DIA 13 DA MARATONA)
Porque há domingos assim...
Chovia a potes.
Foi de repente, de repente, assim que me despedi dos meus dois amigos começou a chover a potes. Uma daquelas chuvadas que nos empurram porta de casa dentro, para um sofá reconfortante.
Pegar ou largar !
O rio mostrava-se-me bravo, mas eu conheço-o, desde miúdo, entendo-lhe a cor escura, nem vivalma no horizonte, nem barcos a subir em direcção à ponte, nem namorados sentados nos bancos decorados pela história dos heróis da vila, grandes, nada, ninguém.
Apertei os cordões do carapuço azul, bem apertados, aconcheguei os phones nas orelhas, fiz play e fui.
Nos primeiros quilómetros vi os meus próprios passos. Só eles.
Tanta era a chuva que, não podia levantar a cabeça, apenas os meus passos. De tempos a tempos desapertava os cordões do carapuço azul e olhava de frente para o meu caminho, ninguém. Nada.
Aprendi que, afinal, não baixo a cabeça apenas para apertar os atacadores, também baixo a cabeça para ver os meus próprios passos, toc-toc-toc-toc, assim, a este ritmo.
Tenho-me obrigado a isso, a olhar os meus passos. Como se tudo estivesse prestes a recomeçar.
Já não me lembrava de como era correr à chuva. Há quem dance, há quem cante, há quem corra à chuva, eu corro à chuva.
Corro contra o vento, contra o tempo, contra aquilo, contra isto, corro, mesmo quando sinto puxar-me para trás.
Agora que corro sem dores nas pernas, finalmente, continuo a fazer tempos de corrida idênticos. A diferença está no facto de, agora, ter voltado a desfrutar do prazer de correr, o prazer de sentir as gotas de suor a cair nos olhos, misturadas com as notas da chuva, sim, consigo diferenciar, o prazer de sentir a temperatura do corpo a subir, e a cabeça a viajar, as pernas a responderem.
O prazer de correr sem ter que parar, só a porcaria do relógio parou, a aplicação também, a meio da corrida. Chateou-me, claro que chateou. Vou mudar, de relógio e de aplicação.
Vou mudar tudo, ou quase tudo, depois da maratona que vou correr, pela primeira vez.
Cada vez mais o sinto.
Tenho vivido momentos difíceis, coisas minhas mas, nos últimos dias têm-me acontecido coisas boas, pessoas. As pessoas fazem-me bem, ao sorriso.
Hoje, pela primeira vez, fui a uma corrida e não corri. Foi nesta corrida que me estreei, há quase cinco anos, sozinho, como sempre, como eu próprio. Fui lá só para dar um abraço, a dois amigos, que me estimam, que estimo, amigos feitos a correr, porque a vida é isso mesmo, uma corrida de fundo, como a maratona.
É este o meu desafio, a minha corrida, a minha experiência. Toda a vida desafiei a vida.
Estamos cara-a-cara, eu e ela, de novo, eu e ela.
A minha maratona não é só uma corrida grande, a minha maratona é a metáfora de toda a minha vida. É agora que preciso, muito, de saber se sou capaz, de saber quem sou eu, de saber como irei ser, dali em diante, porque é perder ou ganhar.
Já não há mais tempo. É o meu tempo, o meu confronto, perder ou ganhar.
Não é apenas uma maratona, é a minha maratona.
Estive com estes dois amigos, depois da corrida, ele de Guimarães, ela de Arruda dos Vinhos, vieram correr à minha terra, ao meu sítio.
Foi, orgulhoso, que lhes falei do caminho onde corro, onde me reencontro, onde sinto e vivo, “é ali em frente, fantástico, não é?”, perguntei, enquanto tomávamos um café, olhando o rio, bravo, o rio.
“Estás a ver a praça de touros? O meu primeiro restaurante era logo a seguir...”.
Falei-lhes imenso de tudo, como sempre, falo imenso, ninguém é perfeito.
Metemos a conversa em dia. O Francisco vai correr a maratona, comigo, em Setembro, a Alice, provavelmente.
Falámos sobre os apoios que estamos a tentar, para suportar esta aventura, falámos da família, amigos.
Tenho tido, nestes dias de temporal, amigos que fazem questão de entrar dentro da metáfora que estou a construir.
Se escrevo este texto, hoje, devo-o à Petra, um ser humano como nunca conheci, não que me tenha feito nada, a não ser empurrar-me para a escrita, de novo, e o tanto que isso é.
Amigos.
E, se ao Francisco e à Alice devo o abraço - há um ano, exactamente, estava em Moçambique, nas aldeias do abraço - à Petra devo o sorriso, e se à Petra devo o sorriso, ao Rui devo um mundo inteiro.
Não contem a ninguém, mas eles não sabem que lhes devo tanto.
Amigos.
Assim que me despedi deles começou a chover a potes.
Foi quando comecei a correr !