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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

23.04.16

A MÁQUINA DOS MILAGRES


The Cat Runner

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Há sítios que deviam ser de visita obrigatória, para todos os seres humanos.

Sítios que são de visita obrigatória, para alguns seres humanos, que o azar não bate só à porta dos outros.

A vida às vezes mete-nos perante histórias, não por acaso, para que tenhamos permanente consciência do nosso tamanho real, pequeno, muito pequeno, por muito grandes que entendamos ser, ou que assim nos vejam.

Somos todos pequenos perante os acasos da vida, por muito grandes que sejamos, até mesmo nesses momentos.

Eu nunca tinha estado no centro de recuperação de Alcoitão - como é conhecido -, que fica ali para as bandas de Cascais.

Foi um acaso que me levou a passar as portas, para o lado de dentro.

Aquilo que eu pensava ser "um centro de recuperação" era afinal um enorme edifício, um hospital, onde centenas de pessoas tentam resgatar a própria vida, onde centenas de funcionários dedicados tentam empurrar esses guerreiros e guerreiras do infortúnio para uma estrada maior e mais longa, sobretudo mais bela.

Ali, não falta nada, ou praticamente nada.

Ali, milhares de pessoas dão tudo aquilo que podem dar, uns de um lado, o da esperança, outros do outro lado, o da coragem.

Vi uma máquina que me impressionou, que consegue executar movimentos tais, que a senhora de meia idade, que não anda, estava a caminhar, com a ajuda dessa máquina.

A máquina replicava os movimentos, e o corpo, e o cérebro, recebiam e executavam as ordens.

Os funcionários do centro de Alcoitão estavam felizes, via-se-lhes a felicidade nas caras. Era dia de festa, embora ali o trabalho não páre.

O centro comemorava 50 anos de existência, naquele dia.

Quando foi construído, pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com dinheiros do Totobola, o centro tinha como objectivo ajudar a reabilitar os mutilados da guerra do Ultramar.

Cinquenta anos depois, já não há guerra na África portuguesa, mas há batalhas, algumas violentas, que se travam ali dentro, todos os dias.

Na tarde desse dia, o centro ia receber um robot, na sequência de uma parceria com a Microsoft.

Esse robot faz o mesmo que a máquina dos milagres ( " só utilizamos esta máquina em pessoas que têm as mínimas probabilidades de voltar a andar, as que não têm não podemos fazer nada, nem criar-lhes expectativas irreais", disse-me a coordenadora da Fisioterapia), só que vai permitir que, de facto, as pessoas andem,se desloquem, que é diferente de andar.

Ele tem uma bateria nas costas, é uma espécie de fato completo, até aos pés e recria os movimentos que permitem caminhar. O paciente caminha.

O cérebro recebe os impulsos e assim poderá dar-se um milagre. Ali têm acontecido alguns milagres, ao longo destes 50 anos.

Porque é de coragem e milagres que se vive ali dentro, de amor e carinho pelos outros, de imensa competência e dedicação.

Eu sei que ali acontecem milagres.

Eu vi.

Tinha terminado um directo, no centro de Actividades Domésticas Diárias.

Dentro daquela sala aprendem-se coisas que já se sabiam, mas que deixámos de saber fazer.

Tomar banho, fazer a barba ou simplesmente voltar-se na cama.

Tão fácil, não é?

Não o é para quem teve um AVC, ou um acidente de viação, as principais fatalidades que atingem os pacientes do centro.

Para nós é!

Virar na cama é algo que fazemos sem sequer pensar no acto.

Que nunca tenhamos que voltar a aprender esse gesto tão natural, como respirar.

Foi um directo intenso, um banho de humildade, de humanidade, enquanto tentava manter vestido o fato de jornalista, afinal foi nesse papel que lá fui.

Mas, os super-homens e as super-mulheres são aqueles(as) que lá estão dentro, revolucionários destemidos de uma revolução que é só deles.

Nós somos outra coisa.

Eles(as) são só gente muito corajosa.

Não vi ninguém com rosto carregado, mas fiz a pergunta: não há momentos de revolta?

"Há", responderam-me, "mas nós estamos cá para que eles deixem de estar presentes".

Aquilo que me acabavam de dizer fazia todo o sentido, momentos depois.

Abro a porta da sala, saio para o longo corredor, com azulejos pretos e brancos, quadrados que comungam as mesmas rodas das mesmas cadeiras, as mesmas pontas das mesmas muletas, que por eles passam.

Ninguém com rosto carregado.

A sala ficava a meio do corredor grande e ocupado.

Gente para um lado, para o outro, a azáfama de um corredor de "hospital".

E eu, ali parado, a meio da viagem.

"Gabriel, Gabriel..."

Não lhe reconheci logo a voz.

Voltei-me, olhei, olhei de novo, para baixo, não lhe reconheci a voz, mas nunca tinha esquecido o seu sorriso e o seu olhar.

Reconheci-o de imediato, ainda que sentado naquela cadeira de rodas.

"Quiko?! Meu querido amigo, há tanto tempo...".

Demos um abraço, como so bons amigos dão.

O Quiko é primo do Olivinho.

Eles eram os meus melhores amigos, num bairro onde vivi, enquanto era miúdo.

Eles, os irmãos, os primos, e os outros putos do bairro. Eram todos caboverdianos.

Mas, o Olivinho era especial.

O Quiko era ainda mais especial que o Olivinho.

Veio-me logo à memória as longas horas de conversa, sobre as cerejas, sobre o campo da escola, sobre os desenhos animados. O Quiko (como o Olivinho) jogavam tanto à bola...

O Quiko nunca se chateava, com nada, nem com ninguém, estava permanentemente a sorrir e, tal como nesta manhã, trinta anos depois, o Quiko falava naquele tom calmo e baixo, e o olhar emanava, como há 30 anos, aquela candura, que me acompanhou ao longo da vida.

Durante 30 anos eu não vi o Quiko, nem soubemos nada um do outro.

naquele instante feliz, eu estava a trabalhar, ele estava a tratar da vida e da recuperação, por isso a conversa foi curta, os abraços não tanto.

Fiquei a saber que teve um AVC, em Janeiro, e que lhe faltam 3 meses para sair do centro.

Nunca imaginaria o Quiko vítima de um AVC, ele cuidava-se, era desportista, tinha vida e talento, mas 30 anos é muito tempo.

Não tive coragem de lhe perguntar se lá deixará a cadeira de rodas, mas hei-de tê-la.

Fiquei só a saber isso sobre ele, e que vive em Alverca.

No dia seguinte enviei-lhe um sms.

Vamos marcar qualquer coisa, com a promessa implícita que vamos recordar essas conversas, esses jogos da bola, essa cachupa que a dona Ani fazia.

Ele já me respondeu, que sim. Que bom.

Era a última pessoa que eu imaginava ali.

O Quiko perdeu-se então entre a multidão de pessoas que cruzavam aquele corredor, feito de azulejos pretos e brancos, depois de mais um forte e sentido abraço.

Percebi que ele estava surpreendido. Eu também.

Surpreendidos, porque pareceu que estivemos a jogar ao berlinde os dois, durante estes 30 anos, que nunca nos separámos e que aquela cadeira de rodas não existia.

Eu tinha mais uma entrevista para fazer.

O Ruben estava à minha espera.

Mas, eu não estava à espera dele.

Sabia que haveria de entrevistar (em directo) um miúdo, a quem a vida pregou uma partida.

Às vezes, a vida devia prestar contas em tribunal, tamanha é a injustiça que ela se dá ao luxo de nos colocar pela frente.

O nó ainda não se tinha desfeito na minha garganta.

 

Estava a ser uma manhã de lições de vida, umas atrás das ouras.

O tal directo com o Ruben já não era viável.

Faltava-me entrevistar o responsável pelo laboratório de próteses e sala de experiências.

Entrei, cumprimentei-o, e ao homem em cadeira de rodas, que passou junto a mim.

Também cumprimentei um miúdo que estava sentado numa cadeira de rodas, com os braços apoiados em duas barras de inox, que auxiliam a marcha, nas quais os pacientes se apoiam.

"Este é que é o Ruben", indicou-me o terapeuta.

" Já vi que és famoso por aqui, Ruben...", disse-lhe, com o meu melhor sorriso.

Ele devolveu-me o sorriso.

Depois da entrevista ao terapeuta o meu trabalho estava concluído, a equipa de substituição tinha chegado, era hora de despedidas.

"Então, não me entrevista?", pergunta-me o Ruben.

Abeirei-me das duas barras de inox, onde ele apoiava os braços, baixei-me para ficar ao nível dele, observei a prótese na perna esquerda, as cicatrizes nos braços, a cara, fitei-lhe a cara e pensei, meu deus, que coragem tu tens nesse olhar, nesse rosto, nesse sorriso, nesse coração. Mas, não lhe o disse.

 - "Sobre o que é que não queres falar, para eu não te perguntar?"

- "Posso falar sobre tudo, não tem problema".

- "Que idade tens?"

- " 15..."

- "O que é que te aconteceu?"

- "Fui atropelado por um camião, em Janeiro".

- "Quanto tempo te falta para saires?"

-"Dizem que 4 meses..."

Neste momento eu não estava a conversar com o Ruben, estava a conversar com ele, com os meus filhos, com o Rodrigo, com a Maria, com os amigos deles, estava a conversar com um ser humano, com toda a vida pela frente, a quem a vida quis desafiar.

Eu sei que ele vai ganhar o desafio. Vi!

Foi neste momento, depois de tudo, que me deixei ir abaixo.

Mantive, fruto da experiência, o fato de jornalista vestido, mas era eu quem ali estava a entrevistar todos os Rubens da vida.

Confesso que estava toldado pela tomada de consciência;

Os horários, a pressão, as contas, as relações, o trabalho ou a revisão do carro, tudo isto é humilhante, quando pela frente temos pessoas com tamanho carácter, coragem e determinação, tudo pela vida.

Foi toldado pelas pessoas e pelo ambiente, que cometi uma gafe, que só eu dei conta, nem o Ruben.

- "O que é que te move, Ruben?".

Imediatamente tive vontade de fugir dali para fora.

- "Andar, caminhar, é esse o meu objectivo. E vou conseguir".

A resposta desmontou tudo.

O que me fica para sempre não é apenas esta frase, esta resposta.

É a forma como ele me disse aquilo.

- "O que é que te move, Ruben?".

Ele olhou-me dentro dos olhos, respirou fundo, sorriu, voltou a respirar fundo e respondeu-me:

- "Andar, caminhar, é esse o meu objectivo. E vou conseguir".

O Ruben deu-me o exemplo. É nele que pensarei sempre que pensar que tenho problemas sérios para resolver.

Foi ele que me ensinou que eu sou minúsculo.

O Ruben tem a idade dos meus filhos e toda a vida pela frente.

Eu também sei que ele vai conseguir.

Gostava de um dia ter visto o Ruben a jogar futebol, a correr, a saltar.

Vi-lhe apenas a força do olhar e a ternura do sorriso.

Entretanto, o Quiko mandou-me uma mensagem:

"Boa noite meu velho amigo, será uma honra reencontrar-me contigo. Aquele abraço, noite feliz".

Não sei se o Quiko me desejou votos de felicidade, através de um sms escrito, sentado na sua cadeira de rodas, nem por sombras sei se o AVC o deixou afectado, ou se recuperará totalmente.

Sei que talvez não tivesse tamanha nobreza no coração, como o Quiko sempre teve, não na sua situação.

Sou um fraco.

Preciso de gente com coragem.

Acho que vou convidar o Ruben para se juntar a mim e ao Quiko, para a nossa conversa de uma vida.

Acho que juntos vamos fazer um brinde a essa vida.

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Hoje de manhã, enquanto fazia a habitual corrida pensei nos dois.

Agora vou fazer o segundo treino do dia.

Vou até à minha segunda família treinar Muay Thai, e estou, como se prova pelo texto, a pensar nos dois, no Ruben e no Quiko e na lição que me deram.

Porque eu posso ir correr de manhã e treinar Muay Thai à tarde.

Duas coisas que parecem tão naturais, que parecem que fazem de nós "super-homens", à vista dos outros. Duas coisas banais, como nos virarmos na cama, ou caminhar.

Mas, não o são, nada disto é assim tão banal quanto parece.

Pergunte ao Quiko ou ao Ruben!

 

 

 

 

 

 

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