A EVANGELIZAÇÃO
Hoje não fomos correr.
Saímos do trabalho com uma hora e pouco de diferença, trabalhamos juntos, oh deus, é verdade, e a meio da tarde já lhe tinha perguntado (é inevitável misturar o pessoal com o profissional, quando se trabalha junto há uns 17 ou 18 anos, todos os dias, no mesmo local), “vamos correr a que horas?”.
“Hoje acho que não vou”, respondeu-me.
“Ok, achas que consegues o off para abrir o noticiário das 16 horas?”.
“Claro, e vai à bolsa que estão lá mais dois off´s e um vivo”.
Ainda levantei a questão da corrida de domingo, mas fui imediatamente confrontado com um facto indesmentível, como que a dizer, vamos trabalhar:
“Nos últimos 30 dias fiz 26 corridas, hoje vou descansar”.
Contra factos, diz o povo, não há argumentos.
O povo tem sempre razão, mesmo quando a não tem.
Efectivamente, já lhe noto os gémeos mais torneados, as ancas mais sólidas.
Mas, eu sou toldado pelo passar dos tempos, juntos, suspeito, por isso.
Mas, nota-se.
Sentados nos sofás da sala, ela falava com alguém ao telefone.
O filho chegava mais tarde, do treino.
Aproveitava, ela e eu, o momento de pausa.
Puxei a box atrás e comecei a ver a entrevista da deputada Mariana Mortágua.
Vou ser sincero; já a apreciei mais.
Até já me identifiquei com ideias dela, mas os trejeitos, os olhares, o desdém, as expressões, que é o que mais conta na comunicação, começam a fazer-me olhar para ela com alguma apreensão.
Por isso quis ver a entrevista.
Enquanto se trocavam os primeiros argumentos, a meu lado, uma conversa.
Normalmente não escuto as conversas dos outros, mas aqui foi inevitável.
Uns dois metros nos separavam, de um sofá para o outro.
Baixei o som da televisão e meti-me à escuta.
Portanto, vou divulgar uma conversa que ouvi.
Com autorização.
Transformo-me neste momento num verdadeiro e consentido cusco.
Não fomos correr, mas a conversa era sobre corrida, exercício.
E, o que eu gostei do que ouvi, da conversa, porque da entrevista pouco vi.
Quero dizer, olhava, mas não ouvia.
O meu interesse era outro.
A conversa versava mais ou menos dentro desta ideia;
“É muito bom, a todos os níveis”, isto a propósito de ser confrontada com o facto de “nem sequer 200 metros fazia, por dia”, pior, “quando subia as escadas chegava a arfar”.
Observei os trejeitos de Mortágua, e o olhar, continuei a escutar a conversa, ao telemóvel.
“Em 30 dias consegui fazer 26 corridas”, mas o inverno está à porta, e à noite só correu umas duas vezes, comigo.
“No inverno vou para o ginásio, meto o saco no carro e sigo”, eu também acho que é o melhor, porque “de manhã, se não tiver tempestade, ainda vou, mas ao fim do dia...”
Bem sei o que é isso de vir do trabalho, rumo à lareira e aos cobertores, mas parar, para trocar de roupa, enfrentar o frio e a chuva, o escuro e o suor, muito mais difícil que ir de manhã.
Fiquei a saber que (ela) nunca funcionou tão bem, que nota diferenças, na pele, na respiração, na concentração, na verdade, sem saber, ela está é a queimar etapas.
Há-de dar-se conta, no domingo que vem.
“Bebo mais água”, ouvi-lhe, “tenho semanas em que descanso um dia, mas tento manter a frequência”.
Olhei para a televisão, sem som, e por momentos pensei escutar uma outra pessoa, alguém que não conhecia.
E, continuava a gostar do que ouvia.
A explicação sobre o facto de os filhos já quase serem independentes nas tarefas, o que liberta o tempo e a agenda, os horários dos ginásios, já iam em hipotéticas fórmulas para gerir os intervalos do tempo, fazendo exercício.
Por exemplo, depois de deixar os miúdos na escola, até seguir para o trabalho.
A conversa acabou com gargalhadas. As dela, as da pessoa que estava no outro lado da linha, e as minhas.
“Um destes dias vamos aos...aos jogos olímpicos dos reformados, não, dos séniores, não, não, dos veteranos, isso, qualquer dia estamos tão em forma que vamos a uns jogos olímpicos quaisquer”.
Até podem nunca ir, mas uma coisa eu aprendi a ver a Mortágua, sem som, isto da evangelização funciona mesmo.
Evangelizou-se e espalha a mensagem.
Ela que é gente com ideias próprias, a Carla, que a Mortágua não corre comigo.
Nunca, em trinta anos, sentido figurado, a tinha ouvido sequer pronunciar a palavra olímpicos, quanto mais rir à gargalhada com isso.
Ela ria à gargalhada porque corre.
Depois fui jantar, que o meu filho chegou do treino.
Acabei por não ouvir a Mortágua, mas prometo que amanhã vamos correr juntos, que domingo é o nosso dia.
Até porque o inverno ainda não chegou!