Zé Manel é um homem do Douro.
O Douro é ele próprio, dentro e fora de si. Salta-lhe pelos olhos brilhantes, por detrás daqueles grossos óculos de massa preta.
Basta olhar para ele.
Observa-se à primeira, entende-se-lhe os sinais e os segredos da vinha, da terra e do sol.
Também transporta chuva no olhar e vento na alma, que os olhos não mentem, nunca. Nunca nos mentem, os sacanas.
Zé Manel é um profundo, culto, sábio e exímio contador de histórias, histórias da vida, da vida dele, sobretudo, que pouco gosta de falar da vida dos outros.
Numa dessas noites, em redor da mesa grande, disse-lhe eu:
“O senhor conta histórias com tinta que lhe sai da medula”.
A frase é do Gabriel, o Pensador, o outro, não eu, não minha, desta vez.
Mas, não era fácil acompanhar aquela inteligência, sentada à minha frente, por isso plagiei, plagiador, me confesso.
Culto, intelectualmente muito desenvolvido, homem das artes, do vinho e da beleza, Zé Manel ficou a pensar que aquela frase do caraças era minha.
E, eu senti-me bem com isso.
Zé Manel é casado – há uma vida – com Luísa.
São das pessoas mais fantásticas que conheci até hoje, e olhe que já levo uns anos por cá.
Conhecemo-nos há uma semana, por alturas em que escrevo este texto, uma semana depois.
São ambos do Douro.
Herdaram a Quinta da Senhora da Graça, ali pelos lados de Santa Marta de Penaguião.
A filha, produtora de cinema e televisão vive em Lisboa, visita-os regularmente, naquele refúgio que deve continuar secreto – ou quase – para todo o sempre.
São gente feliz, gente boa, gente de quem não apetece sair de perto.
Cheguei na quarta feira, a corrida era no domingo.
Na primeira noite dormi. Ponto.
Na segunda noite chamaram-me, e eu fui.
“Carla, tenho ali um arroz de forno e vou fazer umas alheiras, querem vir?”.
Fomos.
Ali ficamos pela noite dentro, comendo, bebendo, conversando, que à mesa, no Douro, conversa-se.
Zé Manuel é um homem marcado pela guerra. Nunca a quis, nunca a entendeu, nunca a esqueceu. Nem ao pai.
Chamava-se Armindo Lopes.
Nem a mãe, li, olhos molhados, um dos muitos poemas que Ze Manel escreveu, durante a guerra.
Operações Especiais, na Guiné.