O DIA EM QUE IAMOS SENDO ATROPELADOS
Líderes...
Eu e a minha nova parceira de corrida liderámos a meia maratona, a Corrida da Emoção, durante pelo menos um segundo.
Aos três segundos ela liderava o pelotão feminino, e eu encontrava-me nos dez primeiros.
Aos cinco segundos já tínhamos sido absorvidos pelo pelotão da frente.
Aguentámos uns bons quatro minutos nos cem primeiros, até à curva onde estava um tanque de guerra estacionado.
A minha preocupação era com o facto de ela poder ser atropelada, sobretudo quando avistámos a primeira subida, a seguir à segunda rotunda da prova.
Às rotundas perdi-lhe a conta, às subidas também, às descidas conto-as pelas pernas.
A rua era estreita, nas entranhas de Viriato, ainda íamos com muitos dos que querem fazer bons tempos, que correm pelo tempo, ainda não estávamos a salvo, apesar de os militares do regimento de infantaria estarem em cada rua, o que sossegava, mas a rua era muito estreita, e bonita.
Caminhámos um pouco, na impossibilidade de correr, uns segundos.
Depois, abriu, um largo.
“Então, tem que treinar mais vezes”, disse-me um tipo todo sorridente, enquanto passava por mim.
Não deve ter reparado na minha camisola do Muay Thai.
A minha nova parceira de corrida ia a correr num stress como nunca vi.
Estava com dificuldades em respirar, tinha o rosto estranho, o olhar também, ia em sofrimento, quando ela entra em stress, o que acontece uma vez de dez em dez anos, é esquecer.
Abrandámos, coloquei o braço por cima do ombro...
“Não me agarres...”
"Respira fundo, vamos chegar ao fim, a meta está lá, o Artur está a ver-nos, respira e quando estiveres bem vamos".
Contou-me, depois, já a caminho do hotel, que pensou assim:
“Mas, porque é que eu vim a isto, porque é que não fui aos cinco quilómetros, foi um stress durante os primeiros quatro quilómetros, só gente a passar por mim, o Miguel Cabral na mota, tu, as pessoas, só pensei, mas porque é que me meti nisto”.
Aqueles quilómetros na caixa da frente não lhe permitiram correr ao ritmo que tem treinado, aos dois quilómetros estava na red line.
Nessa altura, como sempre, eu sabia que ia passar.
“Arrependida?”.
“Achas? Nem pensar, depois dos quatro, cinco quilómetros entrei na corrida e adorei”.
Eu dei conta, bem que tentava manter o mesmo ritmo, para melhor controlar as coisas, mas ela, solta, leve, ora acelerava, ora abrandava, ora acelerava, constante, transpirada, eu ouvia-lhe a respiração.
A seguir aos seis quilómetros fez aquilo que detesta que lhe façam, falou, comigo.
Sinal que já estava em piloto-automático.
Disse-lhe: “ aprecia a partir de agora”, dei-lhe um beijo e acelerámos a passada.
O último quilómetro, o décimo, foi o mais rápido.
Já brincávamos:
“Recuperaste nestes duzentos metros planos?”
“Sim...”
“Então olha para a frente, as boas notícias é que temos ali a centésima subida”.
Tudo o que sobe também desce. Em Viseu não é bem assim.
Dois muros em pedra, um de cada lado de uma apertada estrada onde, estou certo, Viriato por lá andou.
A última casa, ao lado direito.
"Bom dia, doutor, como vai", gritámos os dois.
O antigo secretário de estado das comunidades olhou-nos, primeiro sem perceber, depois reconheceu-nos e sacou da foto.
"Bom dia, boa corrida para vós", disse Cesário.
As coisas que acontecem durante uma corrida.
Ainda dissertámos uns segundos sobre o facto de o ex-governante viver numa calma daquelas, onde a qualidade é vida.
A seguir à curva, “isto agora é na boa, faltam dois quilómetros”, diz-me ela.
As pessoas aplaudem-nos à passagem, a nós e aos outros, apoio que faz milagres, às vezes.
Fora dos grandes centros as pessoas tendem mais a conhecer aqueles que só vêem na televisão, ainda assim fiquei admirado com aqueles incentivos, naquela rua, a quilómetro e meio da meta:
“Força, vamos TVI, sempre com a TVI”!
Virei-me para trás e gritei: “viva Viseu”, dou sempre troco.
Como é que as pessoas conseguem reconhecer-nos debaixo de uma t-shirt toda molhada, todos despenteados, tortos, enfim, num estado que poucos conhecem. É fantástico.
“Obrigado, um bom domingo”, gritei antes de virar a curva.
“Deixa-te disso, falta um quilómetro, no último quilómetro nunca se fala nem se caminha, sempre o disseste”.
“Nunca, mas a boa notícia é que aquela é a última subida, olha”.
Uma senhora, mais velha que nós, juntou-se ao lado dela.
Acelerei um pouco e deixei-as sozinhas, uns metros.
Travaram amizade.
A sua primeira amizade, em prova.
Já no fim, uma hora depois, diz-me assim: “olha, vai ali a minha amiga do último quilómetro”.
Estava tocada pelo milagre.
Viveu a experiência.
Entrámos na recta da meta. Sózinhos. Aplausos de um lado e do outro.
“Já fiz o meu melhor tempo...”, segredou-me com um orgulho que não cabia naquela recta, nem naquele parque florestal tão bonito.
Não a deixei falar mais, agarrei-lhe na mão, acelerei o mais que pude, enquanto ela, com os dois pés pelo ar, acompanhava.
Eram os metros mais rápidos da sua história, algo que nunca imaginou sequer fazer.
Cortei a meta de mão dada com o grande amor da minha vida, mais uma meta, cortámos a meta de mãos dadas, como eu sempre quis, desde que corro.
Nunca tinha feito isto com ela.
Abraçámo-nos.
“Boa, miúda”.
“Fiz menos meia hora que na única corrida que tinha feito na vida”.
A única vez que correu dez quilómetros fez 1.38h, no domingo fez 1.13h, com apenas mês e meio de treinos.
Brevemente vou vê-la a correr um quilómetro em cinco minutos, não tenho qualquer dúvida.
Mereceu a medalha, se mereceu. Merece sempre. Em tudo.
Agradeceu-me o apoio com uma foto no Instagram.
babei, porque ela também não é destas coisas, acho que está a mudar a um ritmo impressionante.
Bom!
Mas, ainda não lhe disse que ela também é minha inspiração, ainda não o sabe, e que agora, quer ela, quer eu, temos parceiro para correr, juntos.
Ontem e hoje foi a readaptação, mas amanhã vamos treinar. Isto é algo que eu nunca imaginei na minha vida.
A caminho do carro, largou-me a mão, foi direito à baia lateral, começou a bater palmas e a gritar “vamos, força, vamos”.
Aproveitou e alongou enquanto incentivava os outros, e ela também não é destas coisas.
Brinquei com o assunto.
“Tu, a bater palmas, a...”
“Experimenta meter o conta-quilómetros do carro a zero, fazer dez quilómetros e depois diz-me...”
Percebi.
São dez quilómetros, toda a gente fala como se fosse ir ali, mas são sempre dez quilómetros, e quem nunca os correu não faz ideia.
Ela tinha sentido, e foi, inconscientemente, apoiar aqueles que ainda corriam.
É a condição humana.
Pior, foi quando chegamos ao hotel.
“Em Évora vamos fazer uma hora”.
Até tremi.
O monstro vai matar o criador.
É assim o amor.
Morrer por amor, a correr.
(Ela esqueceu-se que daqui a dois domingos temos outra corrida...o que pode querer dizer muito, afinal tenho que acompanhar. Onde me fui meter!)